A história é praticamente a mesma: policia corrupto e viciado trabalha “contra” o crime numa cidade grande dos EUA. Somente quando o alemão Werner Herzog lançou Vício Frenético ano passado (feito em solo norte-americano), descobri que se tratava de uma “adaptação” de um filme de Abel Ferrara da década de 90. No entanto, muitos rechaçaram a ideia de que se trata de uma adaptação porque os filmes, apesar de compartilharem o mesmo argumento, possuem desdobramentos distintos, relacionados cada qual com o universo temático e formal de seus realizadores. No final das contas, são dois grandes exemplares do bom cinema.
Vício Frenético (Bad Lieutenant, EUA, 1992)
Dir: Abel Ferrara
Abel Ferrara faz parte do grupo de grandes cineastas undergroud dos EUA (diga se não é, Jim Jarmusch?). Seus filmes, à primeira vista, podem parecer grandes observações de personagens ou situações, quase como crônicas da vida urbana. Mas esse Vício Frenético evolui de uma situação paradoxal (policial corrupto, viciado em drogas e apostas) para um dilema moral que põe em cheque as convicções do próprio protagonista. O impasse começa quando o tenente vivido por Harvey Keitel precisa encontrar os jovens que estupraram violentamente uma freira.
A questão religiosa parece ser uma constante nos filmes do diretor (vide o belo Maria), e surge aqui através do perdão (tema tão caro à Igreja Católica). O personagem irá se enxergar nos próprios criminosos que a freira irá perdoar pelo crime que lhe infringiram. Perturbado, ele busca uma explicação para tal ato e também uma forma de redenção, a seu próprio modo, sem deixar de ser o personagem torpe que é. Harvey Keitel, por sua vez, é o grande dono do filme, numa atuação absurda e potente de um homem consumido pelo próprio vício. A cena na igreja, com a aparição de Cristo, é de uma intensidade única. Nunca pensei que iria chorar por um personagem assim.
Vício Frenético (Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans, EUA, 2009)
Dir: Werner Herzog
Se os conflitos religiosos não pertencem ao universo de Herzog, a decisão mais acertada foi aproximar o filme de seu tema mais caro: o conflito do homem versus a natureza. Aqui, ganha contornos de compulsão na figura do tenente que se envolve cada vez mais em problemas profissionais, familiares e ainda nas enrascadas que sua namorada, prostituta de luxo, arruma junto a criminosos. Apesar disso, as drogas são o conforto de Terence McDonagh (Nicolas Cage), um vício que ele cultiva como hobby.
Interessante notar que Herzog adota um tom diferenciado nesse prjeto. O que no anterior estava mais próximo de um dilema moral que perturba seu protagonista, aqui o personagem parece não ter noção da gravidade das enrascadas em que se afunda. Ele, ao contrário, busca se divertir e lucrar ao máximo em todas as situações. Mais uma vez, um grande ator assume o personagem principal de forma hipnótica e eletrizante, através de um Nicolas Cage que há muito tempo nos devia uma atuação digna de nota. Há também momentos sensacionais, como a cena da colher perdida ou a da alma do bandido dançando. Insano e irresponsável, o filme é um retrato diferente e dilacerante da compulsão humana.