quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Festival do Rio – Parte 7



Joe (Idem, EUA, 2013)
Dir: David Gordon Green  


Interessante quando os filmes de um festival de cinema desse porte, com tantas possibilidades de programação, começam a se correlacionar uns com os outros, seja temática ou esteticamente. Pois Joe se liga a Nebraska, A Dança da Realidade, O Verão da Minha Vida e Chevrolet Azul pelas questões de paternidade que engendra, embora seja com esse último que o filme de Green mais dialoga ao construir uma estranha relação pai e filho entre seus protagonistas.

Por só conhecer o divertido Segurando as Pontas, dirigido por Green, a primeira surpresa nesse seu novo trabalho surge com o tom altamente dramático de uma narrativa de personagens endurecidos (por mais que ele já tenha feito outros dramas antes). É a história de um homem calejado, o Joe do título (Nicolas Cage), tentando ajudar um garoto (Tye Sheridan) a não se tornar um homem calejado.

O rapaz vive com o pai bêbado e explorador, tentando manter um trabalho com Joe podando árvores de um parque florestal, enquanto o próprio Joe mantém uma vida solitária e amarga, de poucos amigos, à margem. Assim como em Chevrolet Azul, são personagens que se unem pela dor de suas vidas, embora diferente do filme de Moors, não há aqui uma pendência para o mal. No fundo, esse mal já existe em Joe, dado o ambiente opressivo em que ele circula. Sem exagerar no tom, o filme tem algo de melancólico também, mas nunca piegas, porque tudo é muito brutal, um filme másculo.

Além do tom denso e raçudo que Green constrói, outra boa surpresa vem da atuação de um Nicolas Cage longe de excessos, pela qual seu personagem poderia muito bem se enveredar, revelando o ótimo ator que ele sabe ser quando escolhe bons projetos (e é bem dirigido). A química que ele estabelece com o jovem Sheridan é um trunfo do qual o filme só se aproveita.


Um Estranho no Lago (L’Inconnu du Lac, França, 2013)
Dir: Alain Guiraudie 


Uma das grandes sensações dessa edição do Festival do Rio, Um Estranho no Lago é um filme curioso porque parece escapar de certas facilidades narrativas que poderiam torná-lo um filme comum. Mas é um forte estudo dos impérios do desejo, num trabalho muito bem ambientado, carregado de uma naturalidade gritante, vide o ambiente que resolve retratar. 

Somos levados a uma região no interior da França, ao redor de um lago, frequentada majoritariamente por homens gays que buscam ali encontros sexuais fortuitos com desconhecidos. Franck (Pierre Deladonchamps) é um sujeito romântico que se apaixona por Michel (Christophe Paou), sedutor e misterioso. Até aí nada demais, caso os extintos assassinos de Michel não viessem à tona, e Franck, passando a conhecê-los, se deixasse encantar por essa figura soturna mesmo assim.

Alain Guiraudie filma, assim, um curioso retrato de um perigoso desejo que vaga por entre os descaminhos do amor e da morte, sempre numa fronteira muito estreita entre os dois polos. Incrível como o filme flerta com as marcas do suspense, do filme de serial killer e do thriller policial, sem necessariamente se entregar por inteiro a esses tipos de narrativa, ao mesmo tempo em que se aproveita dos elementos que lhes são próprios. O filme tem uma segurança do que realmente quer filmar, da história que quer mostrar.

Nesse desenho de personagens é muito bem-vinda a inclusão de um terceiro elemento na trama, o reservado Henri (Patrick d'Assumçao). Ele já foi casado, já teve encontros com outros homens, mas frequenta o lugar sem querer caso com ninguém, meio que cansado da vida. Gosta dali e se sente bem na companhia de Franck, com quem estabelece uma bonita amizade. O filme se aproveita dessa relação para que cada um exponha suas fragilidades e angústias, rendendo momentos de uma bela cumplicidade.

Guiraudie cuida muito bem do desenho de seus personagens e é muito carinhoso com eles, apesar dos perigos que lhes espreitam. É também certeiro ao criar uma ambientação tão identitária naquele ambiente homo, sem querer chamar grande atenção para isso. Os personagens aparecem constantemente nus, há cenas de sexo, sem pudores nem panfletarismo, tudo filmado com uma naturalidade espantosa. É um diretor a não se perder de vista.


Sapi (Idem, Filipinas, 2013)
Dir: Brillante Mendoza 


Depois de ficar encantado com Vosso Ventre (dos filmes novos, é o topo da minha lista de melhores visto no Festival), não podia deixar de conferir outro filme do diretor filipino Brillante Mendoza. Sapi era ainda mais curioso porque se arvora no terreno do horror, ainda que a marca do social faça questão de estar presente em se tratando de uma obra desse diretor. 

Mas parece um simples capricho do cineasta enveredar por uma narrativa de gênero, sem muita consistência ou afinidade aparente porque Sapi é uma negação no que diz respeito à atmosfera de suspense e medo. Ou antes, é mal moldada no sentido de criar esse ambiente de perversidade por parte de forças maléficas. Além disso, como crítica social, acaba soando bobo e frágil.

O grande entrave do filme é que há muitos focos de atenção. Ao mesmo tempo em que gira ao redor de uma onda de casos de possessão demoníaca em Manila, o filme também está interessado em discutir os meandros do poder do jornalismo, através da “briga” de duas grandes emissoras de televisão no país que buscam explorar de forma sensacionalista os casos de possessão. Desfilam no filme uma série de personagens interessantes (sejam os cidadão que passam por esse mal sobrenatural, sejam uma gama de funcionários das duas empresas televisivas que começam a vivenciar uma série de situações amedrontadoras), mas que não conseguem espaço suficiente para desenvolver suas histórias e conflitos.

O pior é que o filme chega sempre ao limite dos momentos de terror, mas faz questão de abortar todos eles depois que cria certa atmosfera de suspense. É um filme que se baseia no sustinho, no pipocar de um momento de maior medo, mas não sabe muito bem o que fazer depois disso e o abandona. A cena final é a ponta da verve crítica e contestadora do cineasta, abraçando de vez um clima real de suspense (onde há suspensão), mas criando um comentário social muito pertinente sobre o estado de coisas nas Filipinas. Pena que pra chegar até lá o espectador precise passar por momentos de puro sacrifício.


O Ato de Matar (The Act of Killing, Dinamarca/Noruega/Reino Unido, 2012)
Dir: Joshua Oppenheimer 


O Ato de Matar é um filme amoral, no melhor dos sentidos. Isso é possível. Seu maior trunfo é arriscar uma abordagem pouco convencional para tema de extrema seriedade, ao mesmo tempo em que consegue tecer, mesmo que nas entrelinhas, comentários fortíssimos sobre a morte em si e sobre a natureza do mal. 

Como não estranhar de pronto um filme sobre um genocídio, contado sob a perspectiva de militares do exercito ditador da Indonésia que matou e mandou chacinar tanta gente em seu país, vangloriando-se dos seus atos genocidas? É sob esse risco que o filme transcorre, dando voz e espaço para alguns desses ex-mafiosos, agora tidos como heróis nacionais. Eles estão a todo instante diante da câmera, como que encenando um filme sobre aquele período negro relembrado sem muito remorso.

Como discurso, o filme facilmente se abstém de julgamento porque se assemelha a uma coleta de depoimentos, sem grandes interferências, deixando que os dois personagens falem, exponham seus pontos de vista, suas riquezas adquiridas em tantos anos de poder e, principalmente, mostrem como mataram, torturaram, estupraram, empalaram e cometeram tantas outras atrocidades, especialmente contra aqueles de inclinação comunista.

É um horror travestido de uma naturalidade que só parece possível no corpo e na fala daqueles senhores, figuras quase frágeis cujo semblante não parece esconder tanta vileza. Se diante da câmera eles se entregam com uma facilidade abismal, o filme também constrói alguns momentos de fantasia que parecem associar o surreal com seus depoimentos.

Mas se existe um porém no longa é que ele parece tão vislumbrado por aqueles personagens e pelos discursos que defendem, que acaba se alongando demais nas mesmas questões, nas mesmas “denúncias”, ainda sem nenhum tipo de tom denuncista. Uma narrativa mais enxuta seria muito mais potente porque basta pouco tempo para que o que vemos em cena transpareça horror. É o mal do mundo que se faz pelas mãos dos homens.

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