domingo, 3 de novembro de 2013

Mostra SP – parte 6



  

Norte, O Fim da História (Norte, Hangganan ng Kasaysayan, Flipinas, 2013)
Dir: Lav Diaz 


Pode-se reclamar muito de um cineasta que costuma fazer filmes gigantescos (estou falando de longas de 5, 8, 11 horas de duração!). Pois essa é um das marcas que perseguem os trabalhos do diretor filipino Lav Diaz, que recebe uma corajosa retrospectiva nessa edição da Mostra. Mais corajoso ainda é quem se aventura nessas jornadas fílmicas, desse que muita gente considera uma dos grandes cineastas contemporâneos.

Nesse primeiro contato com seu trabalho, justo o mais recente dele, fica muito evidente uma marca clara de um estilo próprio, baseado no óbvio interesse em desenvolver e acompanhar muito de perto os conflitos de seus personagens. Nessas Filipinas rodeadas de violência, um intelectual assassina uma mulher, mas segue livre depois que um homem mais humilde é acusado pelo crime e vai para a prisão.

Diaz consegue dimensionar muito bem a história desses dois homens e da família do preso, abusando muito dos planos longos e das intermináveis conversas que os diversos personagens mantêm. É como se o interesse pelo cotidiano ganhasse um espaço que de fato lhe proporciona a percepção dessa vida que passa. No caso desses personagens aqui, é uma existência árdua, que vai se intensificando cada vez mais em dor e autocompreensão, para o bem e para o mal de cada um.

Não é um filme fácil (são 4 horas de duração), mas não demora muito para passar porque o cineasta consegue manter uma fluidez muito interessante no ritmo da narrativa. Funciona também como um conto moral e sócio-político num país marcado de injustiças.


Child’s Pose (Pozitia Copilului, Romênia, 2013)
Dir: Calin Peter Netzer 


Depois dos créditos iniciais sobrepostos em tela preta, corte seco para Cornelia, filmada em câmera na mão, conversando com uma amiga sobre a ingratidão de seu filho que mal a vê e a trata mal. Child’s Pose é todo assim, direto, sem firulas, tenso, com uma protagonista fortíssima, metida numa situação desagradável. É a força do cinema romeno mais uma vez mostrando que eles fazem um dos cinemas mais interessantes da atualidade.

Barbu (Bogdan Dumitrache) atropelou e matou acidentalmente um garoto pobre quando corria na estrada à noite. É aí que entra a mãe dele a seu socorro, fazendo de tudo para livrar seu filho das garras da justiça. Eles são de família rica e influente, não parece haver dificuldades nesse jogo de poder, o que já revela as mazelas político-sociais de um país que se livrou há poucas décadas de um regime opressor.

Mas Child’s Pose é menos um filme sobre os meandros do sistema jurídico e sim uma história ancorada numa conturbada relação mãe e filho. Apesar da amargura que existe ali, Cornelia, interpretada maravilhosamente por Luminita Gheorghiu, ama incondicionalmente esse filho ingrato. Isso porque Barbu é como um adulto mimado que ainda não aprendeu a se portar como adulto e nem a se livrar da saia da mãe. É a postura de criança do título.

O filme opera o tempo todo nesse clima de tensão entre os dois, misturado à destruição de uma família pobre que perdeu o filho pequeno. Child’s Pose é desde o início um filme duro, sem piedades. Mas quando menos se espera, ele consegue também complexificar seus personagens, até então muito marcados em suas personalidades cruas, numa dos momentos finais mais emocionantes de um filme dessa Mostra. O encontro de mãe e filho com a família do garoto morto é dilacerante e diz muito sobre esse amor materno, o mais forte deles.


Centro Histórico (Idem, Portugal, 2012)
Dir: Aki Kaurismäki, Manoel de Oliveira, Pedro Costa e Victor Erice 


É sempre muito difícil e até mesmo lugar comum apontar a irregularidade de filmes coletivos. Seria o caso desse aqui, mas somente poucas coisas podem realmente ser criticadas. Olhando para os nomes que compõe essa seleção de diretores, nota-se o motivo da segurança dessa afirmação. O longa faz parte de um projeto em que cineastas utilizam como ponto de observação a cidade histórica de Guimarães, berço do reino português.

Aki Kaurismäki é quem abre os trabalhos e parece o mais distante geograficamente porque filma uma história que se aproveita muito pouco daquele espaço histórico e prefere criar mais um conto melancólico desses que abundam em seu cinema. As agruras são do dono de um restaurante tentado conquistar mais clientes. O curta é visivelmente um filme de Kaurismaki, com suas cores e tons bressonianos habituais.

Pedro Costa também deixa evidente sua marca autoral e retoma um antigo personagem seu, Ventura, um velho cabo-verdiano que mora em Portugal. Visivelmente abalado psicologicamente, o filme promove um estranho diálogo entre essa figura soturna e a estátua de um soldado dentro de um elevador. É de um rigor impressionante o que curta traz em termos de encenação e fotografia, um filme hipnotizante.

Já o espanhol Victor Erice, no capo do documentário de memórias pessoais, cria uma das mais deliciosas reuniões de depoimentos íntimos. A partir de uma antiga fotografia de funcionários de uma fábrica têxtil, ele reúne algumas dessas pessoas que contam suas experiências de vida. Mas eles estão tão à vontade diante da câmera que as falas nunca são previsíveis, nem os direcionamentos do filme seguem padrões rígidos, muito menos piegas, embora o curta vai encontrar o tom certo de emoção, congelada no tempo.

E, por fim, a cereja do bolo. Manoel de Oliveira, sóbrio, preciso, sem perder tempo, vai direto ao ponto. Subverte a ideia do conquistador, antes senhor de suas terras, mas agora, na modernidade, passa a ser conquistado pelos turistas que visitam seus monumentos e estátuas para aprisioná-los em suas máquinas fotográficas. Com humor habitual e certa desfaçatez, Oliveira fecha o projeto com um primor que só esse jovem senhor é capaz de estampar na tela.


Um Toque de Pecado (Tian Zhu Ding, China, 2013)
Dir: Jia Zhang-ke 


Jia Zhang-ke continua seu percurso de observação do povo e da vida cotidiana da China atual, com todas as suas transformações político-sociais, mas dessa vez sob o foco da violência. Conta quatro histórias de personagens em diferentes lugares da imensidão do país asiático, todos marcados pela tragédia e os sinais de dor e ira que as pessoas deixam pelo caminho.

Ao invés de embaralhar essas histórias, Zhang-ke prefere deter-se em cada uma delas para finalizar seus contos (embora haja um pequeno retorno no momento final). São histórias de gente que querem seguir seu rumo de vida, mas esbarram nas impertinências da própria vida. Na maioria são trabalhadores infelizes em seus postos. Do minerador que se rebela contra seus patrões, até a atendente de uma sauna de massagem que é assediada por clientes ricos, todos eles serão capazes de momentos de explosão e crueldade. São essas pessoas comuns que sucumbem à opção da violência que o próprio mundo condiciona.

Se essa é uma reflexão que permeia todo o filme, Zhang-ke é hábil também em filmar violência, com brutalidade explícita, quase pornográfica, mas nunca gratuita. É certo que nem todos os segmentos são tão bons em desenvolvimento de enredo, demorando muitas vezes a dizer ao que veio. Mas é um filme brutal sobre um estado de coisas que bagunça e destrói a vida de seus personagens, e também daqueles desafortunados que cruzam seu caminho.


Pais e Filhos (Soshite Chichi ni Naru, Japão, 2013)
Dir: Hirokazu Kore-eda 


Para falar de relações familiares, Kore-eda é mestre. Seu novo filme é uma beleza na forma como lida com as questões entre pai e filho a partir da situação inusitada que toma de assalto duas famílias distintas no Japão: eles descobrem que seus filhos, agora com seis anos, foram trocados na maternidade. O contato das duas famílias faz surgir a dúvida se as crianças precisam ser destrocadas ou não.

Apesar do tom emocional que o filme carrega desde o início, não há lugar aqui para pieguices, isso porque as coisas acontecem no seu tempo, muito bem colocadas na história, sem alarde. Kore-eda assina um roteiro delicadíssimo ao tratar das suas questões, desenhando os personagens de forma sempre tridimensional, com foco em Ryota (Masaharu Fukuyama), esse pai de família mais abastada que reprova totalmente a atitude brincalhona do outro pai que cria seu filho de sangue, numa casa e ambiente muito mais humildes. O trabalho com os atores mirins é mais um trunfo que torna as situações tão críveis e profundas no abalo emocional que aquela situação provoca.

Há um evidente embate social aí também, mas acima de tudo esses dois pais verão o quanto podem ser falhos na criação de seus filhos, mas também o quanto podem aprender um com o outro. É a situação ideal para que o cineasta ponha em xeque a importância da família e, especialmente, dos laços sanguíneos enquanto continuidade da tradição familiar, algo muito conectado à ancestralidade da cultura oriental. O mais difícil é se readaptar nesse processo doloroso, mas bonito, de reaprender a ser pai.


Cães Errantes (Jiao You, Taiwan/França, 2013)
Dir: Tsai Ming-liang 


Um dos filmes que encantaram parte do público da Mostra é esse objeto estranho e hipnótico, extremamente simples no seu conteúdo, mas cheio de significados, dirigido por Tsai Ming-liang. Um pai e seus dois filhos pequenos vagam pelas ruas de Taipei, sem lar, sem família, sem aparo. Dormem em lugares abandonados e tentam conseguir comida de uma forma ou de outra. São como cães vira-latas sem dono, sem alento.

É incrível como um filme tão contemplativo, desse que parece testar a atenção e resistência do espectador, consegue resultados tão interessantes em termos de reflexão sobre a solidão. Pois o que mais temos aqui são os habituais planos longos e estáticos do diretor, que servem muito bem a essa história de gente jogada, deixada à própria sorte. Mas longe de caprichos estéticos e maneirismos de cena, essa opção narrativa acaba sendo uma tradução ideal para o estado de apatia em que vivem esses personagens.

Interessante como há muita fome no filme, e o comer, sempre muito raivoso (como na cena da cabeça de repolho), torna-se uma estranha forma de expurgar toda uma raiva contra o mundo. O abandono também pode ser uma chave interessante de interpretação já que na primeira cena vemos uma mulher que vai embora e deixa os meninos dormindo profundamente. Essa possível figura materna será retomada depois com a aproximação de uma estranha mulher ao grupo. 

Mas ainda assim, a marca do desamparo está toda ali distribuída no filme, dilacerante, crua. A recusa de Tsai em cortar o plano e, principalmente, de tirar a câmera do rosto de seus atores (como no sensacional plano final de Vive l’Amour, por exemplo) é uma maneira de rivalizar a plateia com essa dor, com esse desespero, essa angústia que não parece ter fim. Ninguém sai incólume disso.

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