terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Memória ativa

Vocês Ainda Não Viram Nada! (Vous N’Avez Encore Rien Vu, França/Alemanha, 2012)
Dir: Alain Resnais


Alain Resnais, 90 anos, cineasta vigoroso. É o que não cansa de comprovar esse seu mais novo filme, algo que nem precisava ser atestado, vide exemplos recentes de maturidade e vivacidade fílmica, como em Ervas Daninhas e Beijo na Boca, Não!. Vocês Ainda Não Viram Nada é como um prolongamento evidente de um trato elegante com o fazer cinema, mais um trabalho de encenação caprichado, num filme cheio de camadas e conduzido com uma leveza incrível. Resnais parece dirigir brincando.

O diretor reúne ainda um time de atores sensacionais para criar um verdadeiro jogo de cena criativo em que seus personagens passam a dominar a narrativa pelo simples ato de lembrar. Poucas vezes o ser ator foi celebrado com tanto carinho como é aqui nesse filme perpassado pela memória.

Quando o diretor de teatro Antoine d’Anthac (Denis Podalydès) morre repentinamente, um grupo de atores de sua confiança recebe uma mensagem sua preparada previamente para que eles compareçam a sua casa a fim de assistir a uma projeção de sua peça Eurídice, encenada por um grupo teatral formado por jovens. Eles terão que aprovar ali se aquela nova versão ficou realmente boa. Está montado o palco de um misterioso jogo que, se esconde algo de nebuloso pela forma teatral mesmo pela qual se dá, logo ganha novos ares.

É assim que Sabine Azéma, Pierre Arditi, Anne Consigny, Lambert Wilson, Michel Piccoli, Mathieu Amalric, Anny Duperey, Hippolyte Girardot e outros, interpretando a si mesmos, vão adentrando na peça, tomando para si os personagens que outrora eles mesmos encenaram para d’Anthac, ultrapassando barreiras espaciais e temporais. Todo o filme, e mesmo aqueles que se projetam na tela que eles assistem, parece se curvar a essa nova performance que ali se estabelece.

Assim como a personagem de Emmanuelle Riva em Hiroshima, Meu Amor transportava-se para outro espaço-tempo a partir do leve movimento de uma mão, os atores agora, diante das falas que eles tão bem conhecem, ativam em sua memória os tempos idos em que eles estiveram no palco. E nada disso é previamente proposto, mas antes um movimento quase que automático por parte de quem recorda, perpassando pela lembrança e pelo afeto. É mais uma bela celebração da memória, toda cheia de liberdades poéticas que ultrapassam o registro do naturalismo, como sempre foi a vocação do diretor.

Resnais domina o espaço como ninguém. Não só sua câmera passeia candidamente em busca do ângulo mais apropriado para dar conta dos reveses dessa história, como os personagens/atores se deslocam, nesse espaço-tempo de que agora são donos, a fim de resgatar e defender seus personagens/personagens. 

É interessante notar como, meras peças de um jogo que vai sendo lhes apresentado sem regras definidas, aquelas pessoas ali passam a dominar a narrativa, reconstruindo e ressignificando (mais que meramente repetindo) a trágica história de amor de Eurídice, apaixonando-se perdidamente por Orfeu, por acaso, num dia que será tão trágico. Para nós que assistimos, é um dia de deleite.

Um comentário:

Amanda Aouad disse...

Tá na minha lista de melhores do ano.

bjs