quinta-feira, 5 de junho de 2014

Lembrar e ser

Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima, Mon Amour, França, 1959)
Dir: Alain Resnais



Já no início da década de 50, Alain Resnais possuía uma bela carreira no documentário. Ali ele já ensaiava o espírito inventivo que colocaria em prática já em seu primeiro longa-metragem: Hiroshima, Meu Amor legou ao cinema as possibilidade de transfiguração da narrativa fílmica no tempo e no espaço, incorporando um discurso politizado sobre a guerra. Constitui-se, ainda, como um tratado poético sobre os meandros da memória e a importância do nunca esquecer, seja o amor, seja o horror.

Não é pouco para uma estreia no longa ficcional que causou forte impacto no público da época, juntamente com outros nomes da Nouvelle Vague que naquele ano de 1959 apontavam direções outras, não convencionais, para o cinema. Havia, no grupo, um intuito claro de revigorar a linguagem cinematográfica, libertar o cinema francês do classicismo monocórdio dos filmes de estúdio feitos à época. Acabaram, com isso, despertando no mundo todo uma vontade de romper com os padrões estéticos da cartilha vigente do cinema.

É evidente e marcante o flerte de Resnais com o nouveau roman, movimento literário menos interessado em delimitar rigidamente enredo e personagens e mais voltado para a introspecção destes. Não à toa, Hiroshima, Meu Amor tem Marguerite Duras, uma das expoentes do movimento, como roteirista.

No fio da história, uma atriz (Emmanuelle Riva) está em Hiroshima para rodar um filme sobre a paz mundial e passa a ter um caso extraconjugal com um arquiteto japonês (Eiji Okada). Num dado momento, um gesto que ele faz com a mão trará à mente dela recordações de um passado doloroso, por conta de um amor antigo, proibido, que viveu em meio à loucura da guerra. Começa então um processo de rememoração de fatos que pareciam escondidos no fundo de sua memória. Eis aqui o cerne do filme: revelar a suscetibilidade do homem diante da resistência do lembrar que nos assalta inesperadamente.

É inevitável para a personagem não recordar o romance proibido que teve com o soldado alemão na sua cidade natal em Nevers, já no fim da Segunda Guerra. O desenlace trágico do affair (ele, morto a tiros; ela, à beira da loucura, presa num quarto e depois numa caverna pela própria família envergonhada) marcou profundamente a personagem que revive esses momentos de dor enquanto os rememora. Resnais desloca, assim, a protagonista no tempo-espaço de sua memória, nos levando junto. 


O texto do filme, potente em sua poeticidade, estabelece uma dinâmica muito consistente com a montagem fragmentada (como se construída em blocos, tal qual a própria literatura de Duras). Por vezes ágil, também nebuloso, exigindo o envolvimento do espectador, a narrativa dá a impressão de que testemunhamos um fluxo de recordações em que a memória coletiva entranha-se com o conflito particular dessa mulher. Por mais doloroso que seja, o filme sinaliza a luta pelo não esquecer.

Daí a importância de abrir o longa com um retrato cru da destruição causada pelas bombas atômicas sobre as cidades japonesas, via fortes imagens reais tantos dos escombros físicos de uma cidade arrasada, quanto dos escombros humanos frutos de um massacre atroz. Em certa medida, o cineasta retoma aqui o seu média-metragem Noite e Neblina, duro retorno aos campos de concentração nazistas e aos horrores que lá se encerraram. Por mais que a opção pelo esquecimento possa conferir certo conforto (afinal, os que sobrevivem ao mundo há de seguir em frente), os fatos históricos marcam a humanidade para que se ela possa aprender com eles.

É assim também com as experiências de vida que acumulamos e nos formatam enquanto sujeitos de carne, osso e memória. Ao fim de Hiroshima, Meu Amor, quando os personagens dizem um para o outro “Hiroshima é o teu nome”, “E o teu nome é Nevers”, Resnais e Duras confirmam a proposição de que tempo-espaço são peças fundamentais da constituição única de cada indivíduo. 

A sessão no Cineclube Glauber Rocha, que nos presenteou com uma bela exibição em película do filme, não deixa de ser uma bela homenagem a Alain Resnais que morreu há poucos meses, em pleno vigor criativo. Hiroshima, Meu Amor atesta a vitalidade que o mestre francês conferiu à arte cinematográfica e solidificou em sua carreira. Atesta também o valor da memória, que estará ali, à espreita, pronta para nos fazer recordar. E ser.

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