terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mostra SP – Parte III



A Pequena Casa (Chiisai Ouchi, Japão, 2014)
Dir: Yoji Yamada 



O diretor japonês Yoji Yamada move-se muito bem pelo terreno dos dramas familiares e o melhor do melodrama. Foi com essa destreza que ele se atreveu a refilmar a obra-prima de Yasujiro Ozu, Era Uma Vez em Tóquio, atualizado para os dias atuais, mas com a mesma singeleza e respeito pelos dramas humanos, sem copiar o mestre japonês.

Com A Pequena Casa, Yamada trabalha nessa mesma chave, construindo um filme todo memorialístico. Um neto reencontra um antigo diário da avó que acabou de falecer, passa a compartilhar de suas lembranças, especialmente quando, na juventude, ela deixou a vida no campo para trabalhar em casa de família. A presença da avó morta, interagindo com o neto, surge em tela como a coisa mais natural possível, tipo de frescor que revela menos o pesar e mais o respeito pelo qual os japoneses têm para com os mortos. E aqui, pelo próprio passado.

Curioso como Yamada, via melodrama – com direito a triângulo amoroso envolvendo a jovem criada e a senhora patroa, apaixonadas pelo mesmo homem que deve ir para a front de batalha –, pontua a história do próprio Japão, apreendendo certo sentimento de pesar de um povo que tanto sofreu com o fim da II Guerra Mundial.

Mas A Pequena Casa é menos uma alegoria e mais uma simples história de paixões atravessadas pelos conflitos pessoais dos envolvidos (e também pela própria História), sem apelar para maniqueísmos baratos. O filme consegue ser choroso e delicado, trágico na sua melancolia latente, ainda que os personagens respirem expectativas e tenham seus momentos de alegria. Nada mais justo no mundo dos homens.


O Segredo das Águas (Fatatsume no Mado, Japão, 2014)
Dir: Naomi Kawase 


 
O impacto da cena inicial de
O Segredo das Águas parece guiar o espectador para uma história de mistério: uma garota encontra o corpo de um homem morto na beira da praia. Ela vive numa ilha no Japão, cercada de belezas naturais e gente que cultua ritos ancestrais de adoração das forças da natureza. A própria mãe da protagonista é uma xamã e está à beira da morte.

Seria uma história de pesar e dor caso a mão de Naomi Kawase não levasse o filme para o terreno que lhe é tão reconhecível: o sensorial. Isso nem é tão difícil num lugar paradisíaco, cercado de espiritualidade. Mas a vida real também bate à porta, através de um registro naturalista que Kawase constrói na narrativa, com câmera na mão, acompanhando situações prosaicas – essas que logo tiram o gosto de urgência que o filme parecia ter no início.

Se o longa começa apresentando seus personagens e geografia singular de forma um tanto acidentada, aleatória, a história logo se revela: trata-se de mais um exemplar de rito de passagem, o mundo tomado como lugar de aprendizado. A garota Kyoko (Jun Yoshinaga), 16 anos, vai conhecer o amor, o sexo e a morte, interagindo com sua realidade, com os moradores da ilha, especialmente na companhia do retraído Kaito (Nijirô Murakami).

Há lugar para beleza e delicadeza nesse filme, mas a diretora nunca permite que isso se torne um subterfúgio estético maior que os dramas de seus personagens. Uma das cenas mais emotivas do longa, bonita e triste ao mesmo tempo, se dá no encontro de filha e mãe no leito de enferma, na iminência de deixar esse mundo. É quando, de repente, o místico irrompe a cena, e o viver ou morrer passa a ser uma mera diferença. Para os vivos, ainda resta o conforto da água.


Non Fiction Diary (Idem, Coréia do Sul, 2013) 
Dir: Jung Yoon-Suk


 
A impressão inicial de Non Fiction Diary é que ele mira no capitalismo selvagem pós abertura política da Coreia do Sul de fins da década de 1980. O país tornou-se uma das maiores economias da Ásia, altamente industrializada e exportadora. Um incidente com uma ponte, a queda acidental de edifícios e uma série de crimes perpetrados por funcionários de uma loja de departamentos são os exemplos escolhidos pelo filme para guiar esse estudo analítico. está em questão uma sociedade que teve de se adaptar rapidamente a um novo estilo de vida. mas parece ter cometido seus pecados e criado suas aberrações nesse processo. O resultado, porém, é um corpo estranho em forma de documentário confuso.

É uma pena que o filme abandone a sua melhor história para se tornar um estudo nada investigativo – as conclusões e posições já estão dadas pelo longa – sobre a instituição da pena de morte na Coreia do Sul, algo que só fica claro na terça parte final do filme. O caso dos assassinos seriais, cometidos por sujeitos doentios que, movidos por ódio, desejavam matar brutalmente pessoas de classes mais abastadas – nouveau riches odiados por terem se beneficiado de um sistema desigual – poderia muito bem refletir um sistema sociohistórico que produziu aberrações comportamentais no país.

Texto rápido e altamente didático é narrado em off enquanto o filme despeja uma quantidade considerável de imagens que se pretendem dar conta da complexa rede de interconexões que o filme procura fazer. Pode ser uma dificuldade do espectador ocidental pouco acostumado à história recente de um país distante, mas a impressão maior é que Non Fiction Diary é uma bagunça que não sabe bem aonde quer chegar.


Foxcatcher – Uma História que Chocou o Mundo (Foxcatcher, EUA, 2014) 
Dir: Bennett Miller


 
John du Pont quer ver a América vencer, Mark quer ser o melhor do mundo no que faz. Ele pratica luta greco-romana, du Pont é um amante dos esportes, milionário, e construiu um centro de treinamentos onde é o técnico obstinado a conduzir à vitória os jovens lutadores. Mark tem um irmão, David, também lutador como ele. Ambos aceitam ser capitaneados por uma oferta tentadora de Dupont e terem condições de concretizar seus sonhos, simbolizados por troféus e reconhecimento.

Foxcatcher concentra-se numa relação que se torna estranha, carrega algo de misterioso e incerto nas atitudes cada vez mais impositivas de du Pont. Contrapõe-se à fraqueza emocional de Mark, sujeito pelo qual du Pont parece atraído, relação não muito bem esclarecida pelo filme. Um assassinato vai brotar daí, caso verídico que é o mote da história, apesar do filme interessar-se mais pelo processo que levou a isso, ainda que sem explicações lógicas.

Esse tom de estranheza é estabelecido, de cara, pela composição do personagem de du Pont. Steve Carrell abandona seus tipos cômicos e embarca de cabeça (com um pouco de maquiagem para envelhecê-lo) na construção de um personagem bruto, cada vez mais prepotente, carregando algo de doentio no olhar, na respiração ofegante e na determinação cega pela conquista de seus ideais, ainda que por meio de tortura psicológica. Channing Tatum funciona muito bem como o homenzarrão inseguro de si, não demora a entrar em conflito com o irmão, vivido por um Mark Ruffalo excelente no papel. Um time de boas atuações conduzidas seguramente por Bennet Miller.

E estamos lidando não com o diretor do verborrágico Moneyball – O Homem que Mudou o Jogo e sim com o cineasta do denso Capote. É nesse terreno do drama psicológico que o diretor sustenta um filme que carrega densidade no ar, não abandona nunca o peso de uma atmosfera que logo testemunhará uma tragédia. 

Como retrato de uma América superior e idealizada (não só por ele, mas por toda uma sociedade), o comportamento de John du Pont não passa de um reflexo de uma América fracassada na perseguição doentia de seus valores.

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