quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sobre homens e monstros

Leviatã (Leviathan, Rússia, 2014)
Dir: Andrey Zvyagintsev


De dureza parece viver uma parte do cinema russo recente. Podemos pensar aqui nos trabalhos-pancada de um Sergei Loznista, por exemplo. Leviatã é mais um exemplar de porrada bem dada no espectador, apesar de o fazer com certa elegância, mas sem concessões a seus personagens. O filme de Zvyagintsev, prêmio de roteiro no último Festival de Cannes, é rígido e bravio tal qual a própria região onde os personagens circulam.

O mecânico Kolya (Aleksey Serebryakov) vive com sua família numa região ao norte da Rússia, lugar que o prefeito da cidade (Roman Madyanov) quer desapropriar para construir um centro de comunicações. Não se engane pensando que se trava aqui uma luta de desiguais, o poder público contra o pobre civil. No fundo há isso também, mas o protagonista está longe de assumir a postura de cidadão exemplar oprimido pelo Estado.

Kolya carrega o traço da brutalidade em seu dia a dia, homem de modos rudes tanto na forma de lidar com os negócios e a ação de despejo que sofre da prefeitura, quanto no tratamento ao filho do primeiro casamento e a nova esposa. A família vive uma espécie de relação endurecida, ainda que seja possível flagrar ali certo companheirismo – apesar da esposa parecer se distanciar cada vez mais.

O embate com a administração pública se dá de forma mais calorosa possível, o grito e a violência sendo a principal arma para resolver os conflitos, de ambos os lados (e a bebedeira como fuga). Soa tão natural para aqueles personagens agir dessa maneira que exala daí até mesmo certo senso de humor em alguns momentos – o piquenique nas montanhas é um exemplo evidente. Mas nada que desvie a atenção da natureza brutal dessas pessoas e dessa história sem concessões.

Certamente que as representações do Estado e sua soberania autoproclamada tratam de esmagar seus opositores. Aqui, instituições como a justiça e religião marcam presença forte como norteadores do destino das pessoas, com sua moral oblíqua a serviço dos mais poderosos. Há um cinismo ácido nas palavras do padre cristão ortodoxo que sabe muito bem o que espera Kolya, enquanto os entraves judiciários que o protagonista enfrenta estão claramente contra ele – a juíza lendo a decisão da corte como se metralhasse o homem com sua oratória ininterrupta e seca é uma das imagens mais contundentes do filme.

Kolya, mesmo repleto de defeitos morais, é a pedra no sapato que se torna a vítima oprimida, ainda que ninguém use (ou queira usar) a máscara da inocência. Os desdobramentos para seu desajustamento comportamental só fazem complicar sua situação, assim como destroçam a vida de todos ao redor. O roteiro sabiamente omite certas resoluções, mas deixa o rastro de uma tragédia cuja responsabilidade recai fortemente sobre o poder do Estado, a mãe Rússia vista sem compaixão.

Existe ainda um comentário implícito que coloca as crianças e jovens do filme em situação vulnerável. Brincam com armas e presenciam atos violentos, são testemunhas inocentes de um mundo delinquente e vil, mas exemplares a seus olhos (algo que já estava no longa anterior do diretor, Elena, e também em O Retorno, seu premiado primeiro filme). 

Evocando o monstro bíblico Leviatã que nenhum homem é capaz de enfrentar e destruir, Zvyagintsev discute o destino inexorável daqueles que se contrapõem a algo maior, impiedoso e cruel. O diretor filma com rigor e precisão não só esses embates, como também a natureza inóspita que parece observar o implacável choque de força dos homens.

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