Clarisse ou Alguma
Coisa Sobre Nós Dois (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Petrus Cariri
Filme dos mais potentes a preencher a tela imensa do Teatro
São Luiz, no Cine Ceará, Clarisse ou
Alguma Coisa Sobre Nós Dois é a prata da casa que não está ali na seleção
por motivos puramente patrióticos. O longa de Petrus Cariry afirma a força
criativa do realizador cearense, cada vez mais maduro como encenador, que
apresenta agora uma trajetória dolorosa de acerto de contas.
O filme claramente se abre para a simbólico, sem deixar de
lado a crueza as angústias que a vida real causaram na protagonista, em consonância
com um passado opressor e patriarcal. Clarisse (Sabrina Greve) é uma jovem mulher
que vive com marido estrangeiro e a filha numa bela casa burguesa, fruto do
empreendimento familiar dona de uma pedreira. Mas ela não parece contente, o
incômodo de estar no mundo a acompanha – a personagem sangra casualmente,
pela orelha, pelo nariz, pelo genital, por dentro.
É com esse sentimento de desconforto que ela faz uma visita
ao pai viúvo (Everaldo Pontes), morador de uma grande propriedade no campo,
antiga casa da família, tendo como única companhia a fiel empregada Caetana (Veronica
Cavalcanti). O retorno de Clarisse ao velho lar serve para entendermos um pouco
aqueles personagens e seus conflitos de antes, mas o filme logo se encaminha
para a história de acerto de contas. Há uns diálogos expositivos nesse percurso,
também algumas frases de efeito, metafóricas, ainda que muita coisa fique
subtendida ali nas relações entre eles.
Mais forte é a carga de simbolismo que o filme trabalha a
partir da presença de Clarisse naquele lugar junto a seus fantasmas e memórias.
Desde a primeira e impactante cena, o filme deixa claro a bomba prestes a detonar
que ele próprio é: uma parte pedreira explode estrondosamente no meio do nada e
toda a poeira avança em direção à câmera (a nós?) até cobrir tudo.
Petrus constrói um clima pesado, denso, à medida em que a
situação vai se tornando insuportável para a protagonista, os fantasmas – mesmo
os vivos –, os traumas e culpas passam a ser um grande tormento de Clarisse
naquela casa em que tudo cheira a velharia. O próprio corpo decrépito do pai contribui
para essa sensação de algo estragado, corroído, sem falar na quantidade de
animais e insetos empalhados que parecem ser o grande passatempo do velho.
Junta-se a isso um trabalho de som que potencializa essa
concentração de dores e remorsos expurgados, algo que Petrus já havia exercitado
em seu filme anterior, Mãe e Filha.
Mas aqui – num filme que também poderia se chamar “Pai e Filha” – o percurso de
Clarisse leva à catarse, à libertação, calcados mais do que nunca na construção
de cenas tão alegóricas quanto impactantes.
Clever (Idem,
Uruguai, 2015)
Dir: Federico Borgia e Guilhermo Madeiro
Da admirável produção atuação do Uruguai veio uma das
grandes surpresas dessa edição do Cine Ceará, através de Clever, dirigido pela dupla Federico Borgia e Guilhermo Madeiro. O filme é uma pequena jóia de humor sutil
e nada exagerado que acompanha a saga de um homem divorciado (Santiago Agüero),
apaixonado por carros de corrida, que viaja ao interior do país a fim de
encontrar um misterioso sujeito que faz pinturas radicais em automóveis.
O longa coloca o espectador dentro de um universo repleto de
personagens excêntricos, tal como o fisiculturista fortão e sua mãe dominadora
que o protagonista encontra no caminho. Mas longe de serem personagens
puramente caricatos, os diretores conseguem transformá-los em pessoas carismáticas,
talvez justamente pela estranheza que deles emanam. Daí que o fortão vai
revelar traços de solidão e mesmo interesse por outros homens, assim como a mãe logo expõe seu sex appeal voraz,
muito provavelmente querendo levar para a cama os amigos do filho.
É como se Clever
inventasse um universo muito peculiar e estranho por onde o protagonista
trafegue em busca de seus propósitos, esbarrando em tipo facilmente assimiláveis.
Não dá para esquecer os frequentadores de um bar que estão o tempo todo
chupando um picolé feito de vinho – provável especiaria do lugar – com o qual
enchem a cara e ficam bêbados.
Os diretores têm domínio não só da veia cômica e uma noção precisa
de timming, sem nunca apelar para um
tom exagerado, como ainda acertam bem nos diálogos. Do início ao fim, Clever faz jus ao tipo de proposta de
humor intimista com o qual ele se apresenta. Talvez não exista crescendo, para
além de um clímax estapafúrdio, e por isso o filme não se mostre mais pretensioso.
A cinematografia do Uruguai é bastante jovem, e o país realiza,
em média, dez filmes por ano, em sua maioria documentários. Mas geralmente
alguns desses filmes acabam por chamar atenção por sua vitalidade e cuidado
estético, casos recentes de obras como Gigante,
A Vida Útil e Whisky. Sem prejuízo de qualidade, Clever pode ser incluído nesse grupo, mas acrescentando uma dose certeira
de humor sempre muito bem-vinda.
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