sábado, 30 de setembro de 2017

Festival de Brasília – Parte IX


Era Uma Vez Brasília (Idem, Brasil, 2017) 
Dir: Adirley Queirós


Há sempre um filme brasiliense na mostra competitiva do Festival de Brasília, o que muitos chamam de cota. Mas um filme de Adirley Queirós não é cota, está longe disso. Estaria longe também por ser “um filme da Ceilândia” e não de Brasília, como gosta de tratar o próprio diretor, fazendo referência à região administrativa do Distrito Federal onde mora e de onde produz um discurso politizado e contundente através de suas obras. Claro que há nisso um fator de provocação inerente ao cinema de Adirley como forma de entendimento do seu lugar de fala e também com a finalidade de tensionar noções como a de espaço e mobilidade civil na região do Distrito Federal.

Era uma Vez Brasília talvez esteja imbuído, em certa medida, desse propósito de pensar um espaço onde determinados sujeitos estão inseridos e, dessa vez, meio que aprisionados, estanques, pelas confluências políticas do país e o estado de crise política atual que compartilhamos. Mas quando o longa se bastar somente ao retrato desta situação, o filme empaca, inexplicavelmente, no meio do caminho. Causou certo mal estar a sessão no festival, certamente por conta das altas expectativas e interesse que o trabalho de Adirley provoca em um público mais atento ao cinema independente, mas também por toda uma incompletude que o filme desvela porque constrói uma preparação de forças, uma concentração de energia, que nunca se liberta de todo, nunca se torna (re)ação, nunca ganha corpo e explode. Permanece engasgada com a gente.

O ponto de partida é genial: conta a história do agente intergaláctico WA4 (Wellington Abreu) que recebe a missão de assassinar o presidente Juscelino Kubitschek no dia da inauguração de Brasília. Por algum erro, acaba aportando nos dias atuais, em Ceilândia, logo após o golpe que destituiu Dilma Roussef da presidência da República. Enquanto ele não chega, acompanhamos as interações entre dois remanescentes desse mundo aparentemente distópico e esvaziado que é a Brasília da Era Temer – a sinopse também anuncia: “Este é um documentário gravado no ano 0 P.G. (Pós Golpe), no Distrito Federal e região”. Andreia (Andreia Vieira) e Marquim discutem sua realidade e a necessidade de tomada de posição.

Assim como no filme anterior de Adirley, Branco Sai, Preto Fica – que inclusive venceu o Festival de Brasília em 2014 –, o novo trabalho do diretor utiliza as marcas do cinema de ficção científica para dimensionar uma atmosfera pós-apocalíptica a fim de fazer um retrato paródico, de fortes cores politizadas, do que se vive hoje em termos de arbitrariedade no Brasil. Também serve como representativo do lugar de deslocamento das periferias em relação aos centros de poder, algo que Ceilândia exemplifica muito bem em meio a toda a situação de crise e caos político que acompanhamos dia a dia, estarrecidos.

Adirley considera seu filme um documentário, apesar das fortes marcas de fabulação, talvez por reproduzir, a seu modo, um sentimento atual de desânimo e desamparo frente às crises e encaminhamentos políticos do Brasil de hoje. O filme tem a consciência de construir algo desestabilizador como narrativa e proposta de ação política, jogando a responsabilidade para o espectador. É clara a proposição do realizador em criar um espaço de deslocamento, de estranheza, via marcas do sci-fi, mas especialmente através da cadência do tempo estendido e das ações inconclusas, fincadas no plano das ideias e sugestões. Ao mesmo tempo, tal postura pode ser vista também como incapacidade de construir algo para além de “denúncia” de certa inércia. Ainda mais se pensarmos em Era uma Vez Brasília como um claro prolongamento conceitual de seu petardo anterior, um filme muito mais ativo e mesmo explosivo como posicionamento declarado, e que não precisava esquivar-se da ação.

Das muitas cenas emblemáticas do filme – o churrasco na nave, o pouso, a preparação na arena de luta – há uma em que Marquim mira com sua arma em direção ao Congresso Nacional, distante no horizonte, e finge atirar no lugar, ação sem efeito prático. Adirley, que já explodiu o Congresso no filme anterior, não quer repetir o gesto, até porque o compasso do novo filme é outro, subentende outra postura – diferente da anterior por ser agora da ordem da ilustração (como uma observação do que acontece hoje no país, essa inércia absurda), quando antes era da ordem da proposição (mesmo que simbolicamente, era uma chamada à ação). 

Mas é a força do tempo que incide sobre o novo filme a responsável por uma mudança de humores e disposições. O gesto de distensão do tempo, da tensão e do sentimento de angústia, ao não ganhar corpo e atitude, é o que faz de Era uma Vez Brasília um filme estranhamente conformado já que sua composição narrativa, posta em atitude de inoperância desde o início, não consegue fugir de um duvidoso movimento circular que corre o risco de não ter fim e se encerrar em si mesmo.

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