sábado, 31 de dezembro de 2011

Últimas curtinhas do ano

O ano acaba e sempre ficam os vários filmes sobre os quais eu gostaria de ter escrito este ano, mas por diversos motivos, contratempos e necessidades não pude assim fazê-lo. Tento tirar um pouco do atraso com esses últimos textos curtinhos sobre filmes do ano. E 2011 foi bom em números: até então 322 filmes (fora umas 30 revisões), sendo que desses, 160 são de produções lançadas comercialmente no mercado nacional, seja nos cinemas ou direto em DVD. Só me resta desejar que 2012 continue repleta de (bons) filmes. A todos, feliz ano novo.


A Serbian Film – Terror sem Limites (Srpski Film, Sérvia, 2010)
Dir: Srdjan Spasojevic


Enfim, vi o tal filme polêmico do ano. E independente das discussões sobre censura decorrentes das cenas pesadas de sexo e violência, A Serbian Film - Terror Sem Limites surpreende por ser tão ruinzinho na sua tentativa de soar pesado e contundente, expondo uma tese capenga do “vilão” sobre a maldade humana, essa que segundo ele deve ser combatida com mais maldade e desumanidades (?!?). Milos (Srdjan Todorovic) é um ex-ator pornô que recebe a proposta milionária de participar de uma espécie de reality show em que recebe ordens de transar e espancar pessoas desconhecidas.

O grande problema do filme é tentar incutir o horror por uma coisa que já é por si só repugnante (ou alguém aí é a favor da pedofilia e estupro?). Existe um discurso quase gritante para que o espectador sinta pura repugnação, o tempo todo reiterada pelo filme a cada nova crueldade que o personagem é obrigado a cometer. No fim das contas, nem vale por toda a defesa feita pela liberdade de expressão das obras de arte (sim, considero qualquer filme uma peça de arte), embora seja contrário a qualquer tipo de censura. Mas melhor se fosse por um filme que valesse mais a pena.


Contra o Tempo (Source Code, EUA/França, 2011)
Dir: Duncan Jones


Depois de uma estreia promissora no longa-metragem com o ótimo Lunar, Duncan Jones retorna com mais uma ficção científica, muito embora Contra o Tempo se aproxime mais um pouco do cinema comercial, numa busca por um público maior. Se em Lunar contava mais a perspectiva psicológica de um astronauta no espaço sideral, nesse seu novo filme ficamos vidrados com a história de um ex-soldado do exército (Jake Gyllenhaal) que retorna ao tempo diversas vezes dentro de um trem prestes a explodir, a fim de descobrir o responsável por tal ato terrorista.

O filme explora muito bem a ideia de voltar ao passado, pois não se quer mudar o curso do que já aconteceu, mas sim encontrar o responsável por uma catástrofe que está prestes a se repetir. Além disso, Duncan Jones filma muito bem as constantes voltas às mesmas situações, sempre a partir de um ponto de vista diferenciado. Ainda acrescenta um interesse romântico na pessoa da bela Christina (Michelle Monaghan), colega de trabalho do homem de cujo o corpo o protagonista toma posse. Embora se traia na sua conclusão ao insistir num final que seja aprazível e reconciliador, o filme consegue discutir a ética da vida humana em situações críticas, para além da necessidade do homem (armado do aparato tecnológico) de provar sua superioridade, e lucar com isso.


Corações Perdidos (Welcome to the Rileys, EUA/Reino Unido, 2010)
Dir: Jake Scott


Uma das maiores surpresas do fim de ano é como esse Corações Perdidos possui tanto de sutileza, sensibilidade e maturidade, sem que precise afrontar a inteligência do espectador. O casamento há muito tempo desgastado de Douglas (James Gandolfini) e Lois (Melissa Leo) ganha um toque inesperado quando a amante dele morre de repente num acidente, e ele resolve permanecer em uma outra cidade depois de uma viagem a negócios. Lá, conhece a stripper e prostituta Allison (Kristen Stewart), de quem passa a cuidar, como a uma filha, sem manter nenhum tipo de relação sexual com a garota. Jake Scott (filho de Ridley Scott, escolhendo estrear na direção de um longa pelo caminho do cinema independente) tem o maior cuidado em compor esses personagens e, principalmente, na forma com que eles lidam com as escolhas e atitudes uns dos outros.

Existe ainda um cuidado preciso na maneira como as informações sobre esses personagens vão sendo apresentadas pela narrativa, sem nenhum tipo de pressa, surgindo quando se tornam pertinentes às situações. É assim que vamos descobrir que a filha do casal morreu ainda adolescente num acidente de carro e mais tarde entenderemos que a mãe teve parcela considerável de culpa (por isso, ela, há anos, não sai de casa, nem dirige). É daí que iremos entender porque Douglas tem tanta predisposição em ajudar aquela menina que ele julga desamparada, numa tentativa de reavivar o cuidado paterno. Esse tipo de entendimento nunca nos é mastigado pelo filme; o espectador vai construindo essas relações sozinho, na medida em que se envolve com o esforço daquele casal e ainda torce para que aquele casamento volte aos trilhos. Com um elenco que defende muitíssimo bem seus personagens (Gandolfini e Leo estão excelentes), Jake Scott começa com o pé direito, maduro e disposto a nos entregar um produto que sabe muito bem considerar a sabedoria emocional de quem o assiste.


Compramos um Zoológico (We Bought a Zoo, EUA, 2011)
Dir: Cameron Crowe


Homem recém-viúvo, pai de dois filhos, uma menina pequena e um rapaz adolescente, resolvem mudar de casa. Deparam com um zoológico à beira da falência e resolvem comprar e administrar o local, sem entender nada do assunto. História das mais absurdas (mas é delas de que o cinema quase sempre se nutre), aposta no carimbo de filme “família” para vender a ideia de superação através de trabalho em conjunto. Nada contra, caso o filme não se acomodasse tanto na própria situação de novos proprietários se embaralhando na tentativa de fazer o lugar dar certo novamente, com direito aos animais do zoológico reagindo como se entendessem os dramas e problemas dos humanos.

A história é repleta de saídas fáceis que servem para deixar o espectador feliz, esperançoso, sem questionar como isso se dá no filme (exemplo: a avaliação do inspetor para aprovar o zoológico só podia ser positiva já que ele não achou nenhuma irregularidade no local, embora o filme aposte num certo suspense sobre a liberação do zoo). É o tipo de coisa que faz o espectador se sentir enganado, porque soa artificial. Além disso, os coadjuvantes são todos mal aproveitados (exceto a jeca adorável vivida por Elle Faning). Quando alcança o drama (principalmente o embate entre pai e filho), as discussões parecem rasas e mais preocupadas em soltar piadas de alívio cômico do que resolver de fato a situação. Juro que eu não me incomodo com a ideia de ingenuidade da coisa toda, mas sim com a artificialidade para se chegar a isso.


Margin Call – O Dia Antes do Fim (Margin Call, EUA, 2011)
Dir: J. C. Chandor


Ao contrário do que se pode imaginar, Margin Call – O Dia Antes do Fim não é um filme frenético. Muito pelo contrário, impressiona como uma história sobre a iminência da crise financeira que eclodiu em 2008 possa conter tanta calmaria. Mas isso não quer dizer que não exista tensão. Quando o analista de risco de um grande banco de investimentos é demitido, ele passa a um de seus jovens subordinados informações que andava pesquisando sobre um provável crash das contas da instituição, o que representaria só o início de uma reação em cadeia que deixaria a economia norte-americana (e, por conseguinte, mundial) em maus bocados. É quando se descobre que o tempo da bomba relógio já está se esgotando.

A alta cúpula da empresa é então acionada para discutir a situação e, principalmente, encontrar uma saída o mais rápido possível. O prejuízo, inclusive moral, é inevitável. O grande trunfo do filme é apresentar essa situação de calamidade anunciada sem se mover pelo desespero. A narrativa nunca transparece agitação, as ações dos personagens nunca são precipitadas, embora a situação seja crítica e a apreensão é sentida desde o início. É mais um filme sóbrio, que tenta ainda clarificar um pouco de como se deu a crise econômica (muito embora o economês esteja presente). Assim, faz uma bela dobradinha com o documentário ganhador do Oscar este ano Trabalho Interno. Com um texto preciso e ótimos diálogos, o filme ainda se beneficia de um ótimo elenco, todos em sintonia (destaque para Kevin Spacey que, para além da dureza que deve representar na empresa, revela ainda uma faceta humanista dentro de outro centro dramático que envolve sua cadela à beira da morte). Ela agoniza assim como todo um mercado que estará na mesma situação.


Missão: Impossível – Protocolo Fantasma (Mission: Impossible – Ghost Protocol, EUA, 2011)
Dir: Brad Bird


Incrível como esse filme tem uma história capenga (a missão reaviva a antiquada rivalidade entre Estados Unidos e Rússia), um vilão maniqueísta e um final com aquela “surpresa” que te faz pensar “ah, tá bom”, mas mesmo assim continua uma boa pedida. A quarta investida da série Missão Impossível ganha com Brada Bird (um diretor de animações como O Gigante de Ferro, Os Incríveis e Ratatouille) um belo defensor do cinema de ação, com uma noção de timing muito boa, proporcionando momentos de pura adrenalina (as cenas da escalada no prédio mais alto do mundo e a perseguição em meio a uma tempestade de areia fazem prender o fôlego).

E é com todo esse gás que a franquia se notabilizou, fazendo do absurdo das situações, das missões e, principalmente, da quase “invencibilidade” dos personagens uma marca própria. Basta somente que o talento de Brad Bird administre essas questões em prol do ritmo da narrativa, para não perder em intensidade. Tom Cruise consegue administrar muito bem sua canastrice a favor de seu personagem, enquanto os coadjuvantes equilibram com outras características. Simon Pegg, o alívio cômico; Paula Patton, a sedutora; Jeremy Renner o durão. E há ainda Léa Seydoux, linda de morrer (e isso não é um trocadilho), fazendo as vezes de femme fatale. E não podia faltar os acordes do tema clássico novamente reinventado, aquele que quando soa nos faz ansiar por boas doses de adrenalina.


Natimorto (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Paulo Machline


Depois de Heitor Dhalia filmar a história de um de seus livros, O Cheiro do Ralo, eis que o romancista e cartunista brasileiro Lourenço Mutarelli tem mais uma de suas obras transpostas para as telas de cinema. Dessa vez é Natimorto que ganha adaptação do pouco conhecido Paulo Machline. Mas agora, Mutarelli assume também o protagonismo do filme, ao lado de Simone Spoladore. Ela é uma cantora lírica que tenta uma chance com o agente vivido por Mutarelli para ser aceita pelo maestro de alguma orquestra. Uma pena que o filme se perca com uma história que só parece apontar para a loucura iminente de seu protagonista. Fumante compulsivo, tenta fazer uma relação com as imagens dos versos dos maços de cigarro com as cartas de tarô, tentando prever como será o dia de quem os comprou, num exercício não só curioso como bizarro.

Ao propor à cantora que passem a viver isolados do mundo num quarto de hotel (ele se diz assexuado e possui um casamento desastroso com uma mulher tenebrosa), acaba se afundando na sua própria paranoia, essa que o filme acompanha com um misto de interesse e distanciamento. Simone Spoladore (que tem feito coisas muito ruins ultimamente, como Elvis e Madona e Insolação) gasta bastante de seu talento para conferir naturalidade ao texto muitas vezes artificial e impostado que recebe. Mas mais despreparado ainda está o próprio Mutarelli, visivelmente desprovido de força dramática, o que tira muito a intensidade de seu personagem. E do próprio filme que cola a esse homem perdido, fadado a se autoconsumir entre cigarros, loucuras e desejos não concretizados.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Textos no Coisa de Cinema


É uma grande satisfação poder contribuir com minhas críticas para o site Coisa de Cinema, ao lado de uma galera de primeira e muito interessada. Espero que a parceria seja frutífera. E os trabalhos por lá não param. As últimas contribuições são com textos de A Pele que Habito, Meu País, O Garoto de Bicicleta, Amores Imaginários, O Céu Sobre os Ombros e As Canções. Vale a conferida.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Os idos da política

Tudo pelo Poder (The Ides of March, EUA, 2011)
Dir: George Clooney



Quanto refinamento, Sr. Clooney. O antes astro e galã, primeiro de televisão, depois de cinema, cresce cada vez mais por trás das telas como cineasta, nesse que já é seu quarto trabalho de direção. E talvez mais do que nos outros filmes, existe uma sobriedade invejável na forma como ele narra aqui os passos, tropeços e escolhas de um assessor de imprensa de um importante político rumo à candidatura à presidência da república norte-americana.

Stephen (Ryan Gosling) trabalha para o governador democrata Mike Morris (George Clooney) que disputa com outro político a vaga da legenda para concorrer à presidência dos Estados Unidos. Entre as relações com seu superior, o chefe de assessoria (Philip Seymour Hoffman), o assessor do candidato concorrente (vivido por Paul Giamatti) e um possível aliado político (Jeffrey Wright), há também o envolvimento com uma estagiária da campanha (Evan Rachel Wood) e a “amizade” com uma jornalista (Marisa Tomei) do New York Times. E quem usava certa máscara no início, acaba mudando muito de papel até o fim do filme.

Em Tudo pelo Poder cada movimento, cada atitude dos personagens têm importante peso na corrida pela vitória, em que não está em jogo somente uma vaga política, mas também reputação e oportunidades futuras de todos os envolvidos. Sabendo como ninguém administrar suas reviravoltas (nenhuma absurda), o roteiro, baseado na peça de teatro de Beau Willimon (que também colabora no longa), é um primor em sobriedade. Além dos ótimos diálogos, a narrativa nunca se perde no complexo jogo de relações de poder, detalhando suas jogadas com o máximo de cuidado e clareza.

Junta-se a isso um ritmo ideal, sem pressa nem atropelos, mesmo que a história esteja inserida em meio ao turbilhão de uma campanha que ruma para a disputa da presidência da república norte-americana. Toda a obscuridade que permeia os meandros da disputa pelo poder, traduzida com muita objetividade por uma narrativa segura como os grandes diretores sabem fazer. Sem malabarismos, Clooney se interessa primordialmente por seu enredo. Por isso, a trilha sonora pontual e discreta de Alexandre Desplat.

Contando com um elenco de primeira linha, o filme consegue manter ainda uma coesão incrível nas atuações. Todos muito discretos, defendendo com vigor seus personagens, mas sem exageros. Não há clímax no filme, embora todos tenham ótimos momentos. De uma Evan Rachel Wood (que só se mostra boa atriz quando escolhe os bons projetos – vide O Lutador!), ao sempre talentoso Ryan Gosling, ele que terá sua provação no decorrer da campanha.

Apesar de se centrar na disputa dos democratas (a esquerda norte-americana, justamente a que a classe artística do país apoiou, em especial na eleição de Barack Obama), Clooney não se priva em alfinetar a politicagem que ronda as promessas e atitudes, contrapostas aos jogos de interesse e artimanhas que se evidenciam nos bastidores do partido. Ao mesmo tempo, o filme pode ser visto como uma crítica universal à antiética do mundo político, independente do partido e do país em que se encontram.

Depois da ótima estreia com o irreverente Confissões de uma Mente Perigosa, a veia politizada do diretor já havia surgido em Boa Noite e Boa Sorte, do qual esse Tudo pelo Poder se assemelha mais pela crítica contundente e pela clareza na exposição dos jogos sujos e manipulações que os homens da política (os que detêm poder) são capazes de arquitetar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Casca e essência

A Pele que Habito (La Piel que Habito, Espanha, 2011)
Dir: Pedro Almodóvar



Existem alguns cineastas que já alcançaram uma maturidade segura em seu ofício, não só ao dominar os recursos cinematográficos com propriedade, mas também solidificando um estilo bastante peculiar. Pedro Almodóvar certamente é um desses (rol em que podem ser incluídos os irmãos Coen ou os irmãos Dardenne ou um Martin Scorsese, por exemplo), principalmente depois do reconhecimento conquistado pela trinca formada por Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe e Fale com Ela.

Dito isso, é muito bom ver que seu novo trabalho, A Pele que Habito, segue por caminhos um tanto distintos, mesmo que dialogue com o universo temático do diretor aqui e ali. O namoro com o noir visto em tantos outros filmes surge com mais força, reforçado por uma trilha sonora pontual e sombria, desbancando inclusive o habitual colorido do cineasta. Não que não exista aqui, mas é menos berrante e kitch. Temos, portanto, um Almodóvar mais dark, principalmente na dimensão obsessiva que o protagonista da história tomará para si.

Robert Ledgard (Antonio Banderas) é um cirurgião plástico obcecado pela fabricação de uma pele sintética ultrarresistente, motivação essa que surge depois de um acidente de carro deixar sua esposa com o corpo todo queimado. Encontramos Robert mantendo a bela Vera (Elena Anaya) como sua prisioneira em domicílio, em quem realiza, de forma anti-ética e com sucesso, os experimentos de troca de pele. Fica no ar também uma tensão sexual entre os dois, para além dos testes científicos, o que deixa tudo ainda mais suspeito. Mas essa é só a ponta de uma narrativa cheia de complexidade.

De certa forma, o diretor se distancia do melodrama que marca mais especificamente seus últimos trabalhos (Abraços Partidos e Volver), assim como reserva menos espaço para o humor e o escracho, abraçando uma história de viés misterioso que, enquanto se desdobra, deixa mais dúvidas do que necessariamente respostas para o espectador. O filme nos obriga a um envolvimento atencioso porque em determinados momentos parece seguir por caminhos duvidosos, nos fazendo questionar a direção que o enredo vai tomando.

E talvez aí o filme encontre um entrave. Apesar de manter a atenção a todo instante, a história parece apostar mais no “segredo” que o filme esconde do que necessariamente num clima de apreensão constante. Enquanto isso, vai construindo as peças do quebra-cabeças muitas vezes sem muita emoção ou verdadeiro apreço por elas e pelos seus personagens. É como se houvesse um frieza ali enquanto ele vai montando seu mosaico. Situações como a invasão da casa pelo filho desequilibrado da governanta (Marisa Paredes em mais uma parceria com o diretor), por exemplo, e a relação que se descobre entre ele e Robert soam forçadas e pouco originais.

Mas o filme vai se beneficiar muito com a sensação de estranheza decorrente do revelar final, filmado sem grandes alardes. Quando as situações que antes pareciam desencontradas passam a convergir para uma resolução redonda e das mais inusitadas, o filme ganha novo ar porque as peças fazem todo o sentido, além da grande força dramática que o desfecho carrega. Mesmo assim, se assemelha ao tipo de bizarrice comumente encontrada nos filmes do diretor.

Nesse sentido, é importante notar a dimensão de crueldade que a obstinação de Robert possui. Ele seria um vilão com motivações passionais, composto com imensa tranquilidade por um Antonio Banderas bastante sóbrio. Afasta-se completamente da figura do cientista louco, embora, no fundo, seja essa sua melhor definição, sem nenhum traço dos tiques que esse tipo de personagem possui (e não deixa de ser curioso pensar que a última vez que ator e diretor trabalharam juntos foi em Áta-me, em que seu personagem sequestra uma mulher, mantendo-a no cárcere até que se apaixone por ele).

Elena Anaya também não fica atrás, tendo de compor uma personagem difícil por conta das transformações (em múltiplos sentidos) pelas quais vai passar. Seu autocontrole deixa muitas dúvidas sobre essa prisioneira que se entrega ao sequestrador. Mas seu melhor momento se encontra nos minutos finais, quando a emotividade do diretor vem à tona, na cena mais desconcertante do filme.

Para quem costuma acusar Almodóvar de sempre filmar mais do mesmo (muito embora quando faz isso acerta muitas vezes, justamente pelo domínio que possui de sua arte), A Pele que Habito representa um belo desafio em sua carreira, sem que ele precise recusar as marcas de seu próprio cinema. Perde um pouco a mão quando aposta na crueza para montar os acontecimentos em jogo, no puro e simples encaixar de engrenagens que fazem girar a narrativa. Mas ainda assim se sobressai com o belo exemplar de estudo sobre uma mente obsessiva.


PS: Texto originalmente publicado no site Coisa de Cinema.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

7º Festival Internacional de Cinema de Salvador – Parte 2

Importante cineasta polonês, homenageado pelo evento, Andrzej Wajda teve uma pequena retrospectiva de sua obra exibida na cidade. A seleção privilegiou os filmes menos conhecidos do cineasta, muitos deles nunca exibidos no Brasil. Só pude ver dois deles. Um é clássico, o outro, mais recente, é devastador.


O Homem de Mármore (Czlowiek z marmuru, Polônia, 1977)
Dir: Andrzej Wajda



Como um Cidadão Kane comunista, esse O Homem de Mármore é a busca pela reconstrução de uma personagem. No filme de Wajda, a pessoa em questão é um pedreiro tido por muitos como líder proletário que fortaleceu a imagem do movimento trabalhista e deu forças à luta de classes na década de 50.

25 anos depois, Agnieszka (Krystyna Janda, em seu primeiro papel no cinema) está fazendo um filme/tese de conclusão de curso sobre esse personagem, Mateusz Birkut (Jerzy Radziwilowicz). Ela vai enfrentar o próprio sistema comunista vigente para desenterrar as verdades sobre a real participação de Birkut no processo “revolucionário”, a despeito das pessoas e poderes que estavam por trás de toda aquela história.

Portanto, o filme é sobre a força da imagem (em movimento ou aquela representada pela estátua de mármore de Birkut) enquanto construtora de ídolos que mais tarde seriam esquecidos, e Wajda filma com o vigor de quem também teve dificuldades para criticar o próprio sistema comunista que forjava seus símbolos efêmeros para criar proximidade com o povo.

Mesmo assim, o filme perde um pouco da força pela tentativa de exagerar na contundência com que os atores defendem seus personagens e pronunciam o texto, soando levemente panfletário (Agnieszka é totalmente determinada, Birkut é visto como o fantoche coitado). De qualquer forma, a história é muito bem resolvida, sem soar forçada. O Homem de Mármore ganhou uma continuação mais famosa (O Homem de Ferro, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1981), trilhando o mesmo caminho da denúncia embasada e nunca desrespeitosa com seus personagens e realidade histórica.


Cálamo (Tatarak, Polônia, 2010)
Dir: Andrzej Wajda



Cálamo é um filme em processo, ou o processo de um filme. Intercalado pelas intervenções da própria atriz principal com seu relato de vida, a história cresce assustadoramente e faz um belo estudo sobre a morte e sobre a necessidade de se conviver com a possibilidade dela.

O filme conta a curta história da mulher de um médico que possui uma doença terminal que irá vitimá-la em poucos meses; no entanto, só o marido sabe disso e decide não contar-lhe. Ao mesmo tempo, ela se vê envolvida com um rapaz mais jovem, na medida em que não consegue esquecer a morte dos filhos pequenos ocorrida durante a Segunda Guerra.

Mas o extra-filme vai invadir a história quando o diretor de fotografia do filme, Edward Klosinski, marido da atriz principal, Krystyna Janda (a mesma de O Homem de Mármore e vários outros trabalhos do diretor), morre. As filmagens param, mas retornam meses depois com uma condição da atriz: que seus depoimentos sobre a morte do marido sejam incluídos no filme.

É um prato cheio para Wajda reforçar o discurso da obra, fazendo dialogar muito bem as duas metades. É como se o depoimento real da atriz conferisse força a sua personagem dentro da história (ela se autoajuda). Quando as duas partes se misturam, o longa tem seus melhores momentos (a cena em que a atriz abandona o set de filmagens é sensacional). Krystyna Janda revela a grandiosidade de sua atuação numa entrega poucas vezes vista dessa forma e ajuda enormemente a dar consistência, contundência e sensibilidade a uma história sobre o enfrentamento diante do morrer.

Filmes de novembro


1. A Pele que Habito (Pedro Almodóvar, Espanha, 2011) ***½

2. O Processo de Joana d’Arc (Robert Bresson, França, 1962) ***½

3. O Jardim das Folhas Sagradas (Pola Ribeiro, Brasil, 2010) **

4. Estamos Juntos (Toni Venturi, Brasil, 2011*) **½

5. Na Quadrada das Águas Perdidas (Wagner Miranda e Marcos Carvalho, Brasil, 2010) ***

6. Terra Deu, Terra Come (Rodrigo Siqueira, Brasil, 2009) ***½

7. Budrus (Julia Bacha, EUA/Israel/ Palestina, 2010) ***

8. A Serbian Film – Terror sem Limites (Srdjan Spasojevic, Sérvia, 2010) *½

9. Late Bloomers – O Amor Não Tem Fim (Julie Gavras, Reino Unido/França/ Bélgica, 2011) **½

9. O Moinho e a Cruz (Lech Majewski, Polônia/Suécia, 2011) ****

10. O Homem de Mármore (Andrzej Wajda, Polônia, 1977) ***

11. O Garoto de Bicicleta (Jean-Pierre e Luc Dardenne, Bélgica/França/Itália, 2011) ***½

12. A Infância de Ivan (Andrei Tarkovski, União Soviética, 1962) ***½

13. Triângulo Amoroso (Tom Tykwer, Alemanha, 2011) **

14. Cálamo (Andrzej Wajda, Polônia, 2010) ****

15. Amores Imaginários (Xavier Dolan, Canadá, 2010) *½

16. Chuvas de Verão (Carlos Diegues, Brasil, 1978) ***½

17. Morango e Chocolate (Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, Cuba/México/Espanha/EUA, 1994) ***½

18. Os Inquilinos (Os Incomodados que se Mudem) (Sérgio Bianchi, Brasil, 2009) **

19. Scarface (Brian De Palma, EUA, 1983) ****½


Revisões:

20. Riscado (Gustavo Pizzi, Brasil, 2010) ***½

21. Transeunte (Eryk Rocha, Brasil, 2010) ***½

22. Elvis e Madona (Marcelo Laffitte, Brasil, 2010) *

23. Um Lugar ao Sol (Gabriel Mascaro, Brasil, 2009) ***

24. O Homem que Não Dormia (Edgard Navarro, Brasil, 2011) **

25. A Má Educação (Pedro Almodóvar, Espanha, 2004) ***

26. Fale com Ela (Pedro Almodóvar, Espanha, 2002) *****

27. Lixo Extraordinário (Lucy Walker, Karen Harley e João Jardim, Brasil, 2010) **

27. Filhos de João, O Admirável Mundo Novo Baiano (Henrique Dantas, Brasil, 2009) ***

domingo, 27 de novembro de 2011

7º Festival Internacional de Cinema de Salvador – Parte 1

Pouquíssima coisa eu pude conferir desse festival promovido pelo circuito Sala de Arte, que trouxe para a cidade filmes recentes e inéditos, além de uma bela retrospectiva do cinema de Andrzej Wajda. Aqui, um primeiro post sobre alguns filmes que conferi.


Budrus (Idem, EUA/Israel/ Palestina, 2010)
Dir: Julia Bacha



Quando a cidade de Budrus, entre a Cisjordânia e Israel, passa a ser alvo das intenções israelenses de delimitação de fronteiras com a construção do Muro da Separação, que passaria por uma importante região da cidade, seus moradores resolveram não ficar calados. Sob a liderança de Ayed Morrar, começam uma manifestação de caráter popular que vai crescendo e ganhando apoio, inclusive, do Fatah e do Hamas, facções palestinas rivais, e também de israelenses sensíveis à situação dos moradores locais.

É esse contexto de enfrentamento que a diretora brasileira Julia Bacha, radicada nos Estados Unidos, documenta em seu filme, tendo a bandeira da manifestação pacífica daquele povo como grande particularidade da história. Os moradores querem impedir que suas oliveiras (árvore sagrada para os palestinos e de onde vem o sustento da região com a comercialização de azeitonas) sejam destruídas. Mas como em todo o confronto, a violência não demora a aparecer, pelo próprio tensionamento dos conflitos, muito embora não seja intenção pegar em armas.

Mas é muito impactante ver civis, dentre eles mulheres e crianças, peitando soldados israelenses e impedindo o trabalho dos tratores que tentam aterrar o lugar por onde passaria o muro. É essa tensão, filmada como puro registro documental in loco, uma das grandes forças do filme.

Ao mesmo tempo, por mais que fique claro o posicionamento pró-manifestantes, o documentário procura ouvir os dois lados da questão, desde os moradores até os militares israelenses, os mesmos que aparecem em confronto direto nas imagens, conferindo nuances necessárias a essa história que se junta a tantas outras que marcam os conflitos no Oriente Médio e sua complexa rede política, social e econômica.


O Moinho e a Cruz (The Mill and the Cross, Polônia/Suécia, 2011)
Dir: Lech Majewski



Numa tomada de licença poética das mais corajosas e belas, o cineasta polonês Lech Majewski usa a pintura A Procissão para o Calvário, do artista flamengo Pieter Bruegel, O Velho, para compor esse seu filme que se concentra na própria feitura do quadro pelo artista (interpretado por Rutger Hauer).

A vida cotidiana de um povoado em Flandres, atual Bélgica, dominada pelos espanhóis no século XVI, é descortinada para compor a ambientação retratada na figura, tendo os próprios moradores locais como modelos. Bruegel observa a todos e parece se apropriar do olhar do filme que invade a vida daqueles “figurantes” e seu dia a dia para dotar de naturalidade sua criação. O filme tem pouquíssimos diálogos e prefere observar o movimento daquelas pessoas no quadro.

Com isso, Majeswki dá a dimensão de humildade e sofrimento que cerca a vida daquelas pessoas, acentuada ainda pela dominação estrangeira que inflige ao povo severos castigos sem motivo aparente. Essa noção de martírio é intensificada, principalmente, na crucificação do filho de Maria (personagem de Charlotte Rampling), simulando assim a paixão de Cristo.

Numa época em que tanto se celebra a tecnologia do 3D, O Moinho e a Cruz tridimensionaliza o espaço somente ao contrapor atores em movimento à frente de imagens ora pintadas à mão, ora compostas de grandiosas paisagens reais ou mesmo criadas virtualmente, mas que simulam as da pintura original, criando um efeito espetacular de composição. Com isso, dota o filme de imensa beleza plástica que se contrapõe ao peso da aflição que ronda essa história.


Triângulo Amoroso (Drei, Alemanha, 2011)
Dir: Tom Tykwer



Os relacionamentos extraconjugais ganham aqui ares inusitados e polêmicos. Isso porque o casal Hanna (Sophie Rois) e Simon (Sebastian Schipper) começam um affair, em separado, com o mesmo homem, Adam (Devid Striesow). Tykwer compõe o relacionamento de um casal em crise ao mesmo tempo em que eles buscam em outra pessoa um pouco mais de emoção em suas vidas.

Mesmo com a pitada singular desse relacionamento triplo, o filme demora demais em estabelecer essas conexões, algumas vezes se detendo em assuntos que pouco contribuem para história (como o caso de câncer sofrido pela mãe de Simon). Talvez a tradução do filme para “triângulo amoroso” dê uma falsa ideia de que essa relação seja o grande foco da história, mas o filme ensaia mais que isso até que ela se concretize.

Tom Tykwer, depois de uma carreira internacional que conta com o ótimo Perfume – A História de um Assassino e o thriller Intriga Internacional, volta a sua Alemanha natal depois do sucesso feito com Corra, Lola, Corra (que acabou lhe abrindo as portas do mercado mundial).

Mas não deixa de ser um retorno um tanto frio. O filme tem umas boas pitadas de humor (na verdade, está sendo vendido como comédia romântica!), mas nem sempre funcionam. Há também boas cenas, como a inicial com os fios dos postes, ou a dança com os bailarinos que representam a relação tripla dos personagens. Porém o recheio demora a engatar. O final deixa tudo mais soft ao investir numa virada que parece coisa de novela mexicana, além de uma resolução fácil demais de engolir.

domingo, 20 de novembro de 2011

Curtinhas

A Casa dos Sonhos (Dream House, EUA, 2011)
Dir: Jim Sheridan


O grande problema desse A Casa dos Sonhos é que se trata de um filme de suspense sem suspense nenhum. Jim Sheridan (que já teve bons tempos com Meu Pé Esquerdo e Em Nome do Pai) filma a história de um homem (Daniel Craig) que larga o emprego para se dedicar à escrita de um romance. Na nova casa para onde se mudou, junto com a esposa (Rachel Weisz) e as duas filhas pequenas, começa uma paranoia que envolve o possível assassinato da antiga família que morava naquela casa. A questão é que diretor filma tudo isso como se guardasse um grande segredo, mas que já se encontra perceptível desde o início da história.

Tanto assim, que na metade da narrativa, ele é obrigado a “revelar” o mistério e passa a apostar numa trama mais absurda ainda (como um homem considerado assassino pode permanecer solto por aí, para fins científicos?). Além dos furos de roteiro, a direção de Sheridan não poderia ser mais lugar-comum, coisa da qual ele já estava se aproximando com seu filme anterior, Entre Irmãos (remake de um filme homônimo e já nem tão bom assim da dinamarquesa Susanne Bier). A Casa dos Sonhos, a despeito de sua pouca relevância, ainda tenta reverter a história no seu ato final, tentativa clara de redimir seu personagem para que o espectador saia do cinema aliviado. O efeito é o contrário, deixa-se o cinema frustrado.


Um Sonho de Amor (Io Sono L’amore, Itália, 2009)
Dir: Luca Guadignino


O cinema italiano tem essa tradição em filmar histórias familiares com um pé no melodrama, outro no realismo. Nesse sentido, Um Sonho de Amor se assemelha ao também recente drama italiano Que Mais Posso Querer, muito embora seja bem mais ousado do que esse seu insosso conterrâneo. Em ambos os filmes, mulher casada inicia relacionamento extraconjugal com outro homem. No caso de Um Sonho de Amor, Emma (Tilda Swinton, exercitando sua multiplicidade), de origem russa, renegou seu passado para viver numa família tradicional e de classe abastada. Ao conhecer o melhor amigo de um dos filhos, o belo Antonio (Edoardo Gabbriellini), sua suposta autosegurança é abalada.

Mas antes dar forma a essa relação, o filme consegue criar um panorama bastante rico dos personagens daquela família, driblando possíveis lugares-comuns nesse tipo de história. A própria Emma, apesar de estrangeira, se sente muito bem no seio da família; um dos filhos, mesmo tendo inclinação para piloto de corridas, aceita enfrentar a tarefa de ajudar o irmão mais velho a assumir os negócios da família. A filha lésbica, apesar de ainda esconder seu amor por outra garota, tem o apoio de alguns familiares – inclusive da mãe. Tudo isso ajuda a compor um ambiente sólido, apesar dessas “iminências” que ameaçam a tradicionalidade familiar. Nesse sentido, Emma sabe o quanto seu affair fora do casamento pesa nessa equação. Ao final do filme, o roteiro parece dar uma derrapada terrível, culpando sua personagem pelo adultério, numa saída moralista e rasteira, a fim de por panos quentes sobre a situação. Mas nos angustiantes minutos finais, consegue coragem suficiente para reverter o mal feito e tomar decisões fortes. E termina como um grande filme.


Lola (Idem, Filipinas, 2010)
Dir: Brillante Mendonza


Uma senhora luta contra a ventania para tentar acender uma vela na calçada da rua. Quando indagada sobre o porquê daquela luta, ela explica que seu neto foi assassinado ali no dia anterior. Essa cena inicial de Lola revela não só o tom forte do filme, que inclui ainda a avó do assassino, como já deixa claro a noção de dificuldade que essas duas senhoras terão de enfrentar a partir daí. O filme está muito mais interessado na forma como essas duas senhoras tentam lidar com a situação, não somente na busca pela dignidade de suas famílias, mas também na própria força motriz de sua sobrevivência, e muito menos em focar na resolução e comprovação do crime (o neto preso, por exemplo, só aparece uma única vez no filme, o outro parece foragido).

Não à toa chove e venta muito no filme. A figura frágil daquelas duas senhoras tentam a todo instante resistir o quanto podem às intempéries da natureza e da sociedade, a fim de romper as barreiras que lhe são impostas, em prol da sobrevivência na periferia pobre da capital Manila. Depois de ter ganhado projeção mundial em Cannes (onde apresentou os ótimos Serviço e Execução, ambos filmes porrada como esse aqui), o diretor filipino Brillante Mendonza continua marcando seu estilo seco e observacional, câmera na mão e olhar duro para as mazelas de sua sociedade. Parece não fazer concessões a seus personagens, sujeitos às forças que regem suas vidas no contexto social em que se encontram. Lola (avó em filipino) é um verdadeiro tour de força, um enfrentamento constante que clama por resistência, seja dos personagens ou de nós, espectadores.


A Casa (La Casa Muda, Uruguai, 2010)
Dir: Gustavo Hernández


É impressão minha ou esse A Casa tem problemas sérios de roteiro? Ou melhor, a escolha em fazer um filme todo em um único plano-sequência parece sabotar seu próprio roteiro, como forma de promovê-lo como o primeiro filme de terror filmado em um único take (pelo menos, aparentemente). Então, seria um grave problema de direção. Na história, pai e filha chegam, no cair da noite, a uma casa no meio do nada; eles são contratados para limpar e arrumar a propriedade que será vendida posteriormente. Mas à noite, o pai é atacado e a filha é perseguida por algo/alguém desconhecido. É certo que o filme começa estabelecendo um clima de tensão constante, se aproveitando muito da escuridão do lugar (e consegue fazer um contraste forte com a luz das lamparinas que os personagens carregam) e do uso dos sons e ruídos do ambiente.

No entanto, o filme vai apostar numa explicação de contornos psicológicos na sua parte final que põem a jovem numa situação complexa e surpreendente. Mas os envolvidos no projeto revelam uma aposta duvidosa ao filmar de forma contínua um fluxo de acontecimentos que parece necessitar, implicitamente, de alguns lapsos. Daí se questiona: o que a câmera capta é aquilo que a moça vê ou o que nós vemos? Mas se existe uma mudança drástica na percepção com que os próprios personagens enxergam os acontecimentos misteriosos e sangrentos dos quais eles mesmos são protagonistas, como a perspectiva da imagem pode ser a mesma? (existe somente uma pequena mudança nos minutos finais da narrativa). Em A Casa, forma e conteúdo não parecem falar a mesma língua.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Ranking da Mostra Cinema Conquista – Ano 7


Depois de terminada a Mostra Cinema Conquista e de ter visto todos os filmes exibidos na programação principal no Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima, segue abaixo a lista de filmes em minha ordem de preferência. Curtas se mostraram bem melhores do que a seleção de longas. Quem concordar ou discordar que atire o primeiro comentário:


Longas-metragens


Riscado
Transeunte
Terra Deu, Terra Come
Um Lugar ao Sol
Na Quadrada das Águas Perdidas
Estamos Juntos
O Homem que Não Dormia
O Jardim das Folhas Sagradas
Elvis e Madona


Curtas-metragens nacionais

Qual Queijo Você Quer?
Uma Primavera
Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo
Náufragos
Tela
Julie, Agosto, Setembro
Sala de Milagres
Acabou-se
Braxília
De Lá Pra Cá
A Morte das Velas do Recôncavo
Olho de Boi
Um Outro Ensaio
Doce de Coco
Cavalo
A Peruca de Aquiles
Calma, Monga, Calma!


Curtas-metragens baianos

Ser Tão Cinzento
Curandeiros do Jarê
Vento Leva, Vento Traz
Premonição
Cine Jequié
Lemon Lips
Cellphone
Lindeiras
Memória Urbana
A Morte de D.J. em Paris
Jardim de Plástico
Breve Passeio


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Mostra Cinema Conquista – Diário #9


Tela (SC/BR, 2010)
Dir: Carlos Nader


Mais um curta desconcertante nesta Mostra. Tela põe em cheque não só o lugar do espectador na sala de cinema, mas também do personagem que vai ao cinema e se depara com um filme sobre uma plateia, assim como ele, assim como nós. Além disso, tem um forte assento na metalinguagem e usa isso para, de imediato, questionar a própria ideia de recepção da obra de arte (neste caso a obra fílmica), no sentido de como aquilo que vemos na tela pode mexer conosco, e de formas diferentes dos outros espectadores.

Quando o personagem de Luis Miranda percebe que o filme na tela é uma reprodução de uma platéia no cinema, ele não consegue ficar impassível, enquanto todos os outros na sala (inclusive sua namorada) parecem atentos à projeção. Discute-se assim, a ideia de filme “cabeça”, seja lá o que isso for, mas também a necessidade de sempre se ter uma explicação lógica para tudo que vemos. Sonho se mistura com realidade e isso tudo se confunde com filme projetado. Tela, da forma mais generalizante, é sobre como lidar quando a imagem de um espelho te desafia, sendo que esse mesmo espelho está apontado para você.


Calma, Monga, Calma! (PE/BR, 2010)
Dir: Petrônio de Lorena


Um clima policial com pitadas de horror é o que esse estranho Calma, Monga, Calma! procura estabelecer, por vezes se utilizando da linguagem da reportagem televisiva para contar a estranha história dos ataques que uma provável mulher-fera vem realizando na noite recifense, em especial atacando homens em cinemas pornôs ou casas noturnas. Alguns dizem se tratar de uma mulher gorila, como quem se transforma em besta.

O filme mantém escondida, a todo o momento, a identidade desse algoz, assim como filma sutilmente seus ataques, reforçando assim o clima de mistério. Uma pena que a narrativa se mostre por demais confusa, sem um personagem que guie o enredo ou alguma outra peça central da trama. Não sabemos quem ela é, de onde saiu e por que ataca as pessoas; e o filme vai terminar sem essas respostas. A investigação policial é mal desenvolvida, assim como a escolha de perguntar às pessoas na rua (em imagens que parecem reais) o que acham daquela situação. Ou seja, é confuso, sem foco, mal resolvido e quando menos se espera, acaba. Frustrante.


O Homem que Não Dormia (Idem, Brasil, 2011)
Dir: Edgard Navarro



Apesar de ter uma carreira bem consolidada de curtas e médias-metragens, de onde se destaca SuperOutro (até então seu melhor trabalho, um grito inteligente de anarquia), o baiano Edgard Navarro ganhou maior visibilidade ao sair cheio de prêmios (seis, no total) do Festival de Brasília de 2005 pelo seu bem acabado Eu Me Lembro, estréia do diretor no longa-metragem. Justo por isso, seu mais novo trabalho, O Homem que Não Dormia, trazia uma certa expectativa.

O filme, que encerrou a Mostra Cinema Conquista este ano, foi bastante aplaudido no final, embora a reação geral de confusão era perceptível pelos comentários pós-sessão. Existe muito de anarquia no filme, além de uma vontade latente em contar sua história, mas muita coisa morre na praia porque nem só de intenções vive o cinema.

Parece até que a distinção dos prêmios recebidos anteriormente subiu à cabeça do realizador que, para seu novo projeto, não se preocupou tanto com o foco de sua narrativa, embarcando numa espécie de egotrip autoral, uma vez que o filme tem muito da verve polêmica e escrachada que acompanha Navarro por toda a sua produção, inclusive fazendo parte de sua própria pessoa.

E essas são, na verdade, grandes qualidades, mas neste filme gera uma narrativa confusa e sem liga, como se a todo momento houvesse a impressão de alguma coisa está faltando, apesar das várias boas ideias espalhadas. O mais interessante é descobrir que a história acompanhava Navarro há mais de trinta anos, para só agora ganhar forma.

Numa cidade do interior baiano, cinco pessoas vivem atormentadas por um mesmo pesadelo que não os deixa dormir, envolvendo um barão, um tesouro escondido e trovões. Quando um peregrino (Luiz Paulino dos Santos) chega à cidade, as pessoas o reconhecem como o personagem do sonho, agora um tanto mudado, homem fadado a nunca dormir, perambulando pelo mundo como um andarilho.

Dito assim, parece tudo no seu lugar. Mas Navarro embaralha as histórias dos personagens, apresentando-os a partir de certos estereótipos (o padre sem fé, a mulher de vida livre, a esposa infiel do coronel, o louco torturado pelos militares, o epilético). Apresenta também os flashs da “lenda” do barão que traiu seus companheiros para ficar com um tesouro, acabando por amaldiçoá-lo a peregrinar pelo mundo eternamente sem dormir. Na mesma medida em que muita coisa fica sem explicação (e isso nem é o grande problema), há uma despreocupação em contextualizar a história e a trajetória dos personagens, tornando tudo muito solto no filme.

Existe ainda uma atmosfera que se quer anárquica porque é explícita. O diretor faz questão de dar destaque ao nu, com closes das genitálias de seus atores, numa tentativa de “chocar”, mas que peca por soar gratuita e muitas vezes forçada. É quase infantil na sua forma de chamar atenção. Em Eu Me Lembro, por exemplo, esse nu existe, mas é apresentado com muito mais naturalidade dentro da narrativa, possui uma razão de ser. Talvez seja esse um ranço do qual Navarro não consegue fugir.

Por outro lado, é interessante notar como a marca visual do cineasta, bastante evidente em Eu Me Lembro, retorna aqui na textura limpa e rebuscada da fotografia, dessa vez ganhando ares mais sombrios e, por vezes, até exagerados. A constituição do ambiente interiorano também é dos mais felizes (não à toa já recebeu prêmio por sua direção de arte).

Em O Homem que Não Dormia as diatribes de Navarro, dessa vez, parecem gratuitas e pouco estimulantes. De provocação por provocação, o cinema já está cheio, e a produção brasileira precisa menos de invenções e mais de consciência criativa. Vontade e vigor, Navarro parece ter de sobra, basta aliar isso a sensatez. Que ele durma bem para pensar no próximo projeto.