terça-feira, 21 de junho de 2011

O tempo e o tempo presente

Meia-Noite em Paris (Midnight in Paris, EUA/Espanha, 2011)
Dir: Woody Allen


Woody Allen é senhor sagaz, sabe como ninguém, e com humor ácido e ligeiro, expor certas mazelas e pessimismos da alma humana, e já nos deu visões bem amargas e trágicas da vida. Mas vez ou outra aparece para nos lembrar das pessoas de grandeza de espírito e das possibilidades de felicidade. Nesse sentido, Meia-Noite em Paris é menos uma celebração da Cidade Luz e mais uma ode à liberdade criativa e, principalmente, ao tempo presente, embora a nostalgia ao passado seja aqui uma constante.

Owen Wilson vive o romancista e roteirista de cinema Gil, em passagem por Paris em companhia da noiva Inez (Rachel McAdams) e dos pais dela, típicos americanos reacionários; a moça, então, parece totalmente descrente do trabalho de seu parceiro, tratando-o com certa inferioridade.

Mas Gil vai se encantar por Paris e pelo ideal romântico de ser um escritor que vive na cidade em busca de inspiração. Num arroubo fantasioso do filme, ele vai retornar inexplicavelmente à Paris da década de 20 e manter contato com diversas personalidades tais como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e Salvador Dalí, entre tantos que naquela época viviam e criavam em Paris, além de curtir toda a boemia noturna da cidade. O filme lembra demais a atmosfera despretensiosa de A Rosa Púrpura do Cairo.

As tantas referências do filme a pessoas e acontecimentos reais dão lugar a um humor mais refinado e inteligente, não um que faz gargalhar, mas gera risadas de canto de boca sempre bem-vindas. O filme nunca assume um perfil intelectualista, como Allen sabe muito bem evitar, embora seja homem dos mais cultos. Ao mesmo tempo, o filme nos deixa mais íntimos daquelas personalidades, uma proximidade que o filme trata com um naturalismo bastante charmoso.

Por sua vez, Owen Wilson cria uma versão muito competente do próprio Allen, abandonando os tiques exagerados das comédias bobas (o que um bom diretor não faz, hein!). Além disso, todo o elenco coadjuvante está adorável, de um Adrien Brody deslumbrado como Salvador Dalí, até a beleza faceira de Marion Cotillard como uma das amantes de Pablo Picasso. Mesmo Rachel McAdams surpreende com uma composição segura e sem trejeitos.

Paris surge, então, como esse ambiente de possibilidades fantásticas de alcançar e estar próximo da grande arte feita pelos grandes gênios do passado. Gil fica cada vez mais encantado com toda aquela atmosfera efervescente, mas vai saber exatamente escolher o seu lugar, o tempo a que pertence. E vale lembrar que o filme começa com belas imagens da Paris atual, suas ruas, luzes, gente e chuva – a celebração da beleza do cotidiano. Porque a arte esteve, e ainda está, viva. Olha Woody Allen aí para nos mostrar isso.

sábado, 18 de junho de 2011

Festival Varilux (parte IV): Poder às mulheres


Potiche – Esposa Troféu
(Potiche, França, 2010)
Dir: François Ozon



É muito interessante acompanhar os movimentos de um cineasta como François Ozon que a cada novo filme parece se interessar por um estilo ou gênero diferente, oferecendo produtos os mais diversos. Depois do drama intimista em O Refúgio, o conto social de caráter fantasioso com o adorável Ricky e o melodrama de época no subestimado Angel (só para ficar nos três últimos), ele volta com essa comédia de tons feministas e retrô, assumindo o kitsch com consciência total.

Suzanne Pujol (Catherine Deneuve) é a esposa do industrial Robert (Fabrice Luchini), mulher obediente, passiva, tudo aceita e faz vista grossa à infidelidade do marido; um objeto de decoração. Quando os funcionários em greve na fábrica sequestram seu marido e a reputação do dono parece bastante negativa diante da crise, Suzanne assume a chefia da empresa com seu toque de empreendedora feminina.

A reviravolta revela não só uma mulher muito mais proativa e inteligente, como abala as estruturas de seu casamento de fachada, fazendo revelar os segredos de todos na família. A esposa troféu do título dá lugar a uma mulher muito mais consciente de sua posição e poder de mando. Embora vivesse fechada num casamento de aparências, aproveitou muito bem sua juventude.

Por mais que o filme se passe num ambiente burguês "asséptico" e francês, em fins da década de 70, Ozon não deixa de revelar um despudor cômico na forma como trata (e mostra) sexo, traição, filhos fora do casamento. Também o tom “politizado” e mesmo algumas situações de tensão são tratadas com muita graça pelo roteiro.

Nesse sentido, é bastante visível a segurança com que o cineasta lida com os excessos dramáticos da narrativa, criando uma atmosfera farsesca deliciosa, que se aproxima bastante do seu 8 Mulheres, tanto no kitsch como no feminista, e em menor grau também de Angel, colocando em alto posto o papel da mulher na sociedade. Além disso, direção de arte e figurinos vistosos dão mais charme ainda a esse tom over proposital.

Catherine Deneuve, elegantíssima, surge irrepreensivelmente luminosa em cena, embora haja espaço para a presença marcante de Gérard Depardieu como o político e ex-amante de Suzanne; de Karin Viard como a secretária e amante de Robert, que de megera passa a apoiadora da causa feminista de Suzanne. Mas talvez Fabrice Luchini, como o esposo sacana, seja o melhor em cena, preocupado e espertíssimo.

Mesmo que promova uma bela guerra de sexos, Potiche sabe administrar muito bem os lugares da mulher, sem perder sua própria feminilidade. Suzanne, em algum momento, afirma, ingenuamente, “eu sou uma mulher” (que parece remeter gostosamente a Uma Mulher é Uma Mulher, de Jean-Luc Godard). Mas é daquelas cujo poder estava a todo tempo ali, só precisou de uma ajuda para se revelar, mas nunca para atropelar. Seu troféu é por outra vitória.


Uma Doce Mentira (De Vrais Mensonges, França, 2010)
Dir: Pierre Salvadori



Dona de um salão de beleza recebe uma carta anônima de amor. Sem motivo aparente, despreza o admirador secreto, mas resolve enviar a carta para a mãe, mulher solitária e abandonada pelo marido, à beira da depressão. A sinopse já parece ridícula por si só (a ideia é ajudar a mãe ou bagunçar a vida dela?). Como se não bastasse, o diretor Pierre Salvadori já havia feito com a mesma Audrey Tautou a fraquinha comédia romântica Amar... Não Tem Preço.

Mas como é preciso sempre ter esperanças de que as pessoas (e seus filmes) melhorem, lá fui eu ver Uma Doce Mentira nesse último dia de Festival Varilux, mais até para fechar agenda. Que arrependimento porque salta aos olhos as tentativas fracassadas de fazer piada, idiotizando os personagens (grande problema das comédias) na maioria das vezes.

Logo no início, Emilie (Tautou) briga com uma cliente sobre o melhor corte de cabelo que ela deve adotar, só para que ela corte, sem aviso e irreversivelmente, a franja da pobre mulher. Em outro momento ela fala ao celular com uma de suas empregadas no salão estando a poucos passos dela, isso só porque ela não quer olhar diretamente para Jean, que trabalha com serviços gerais no estabelecimento e se revela um grande intelectual, mas atualmente em crise, por isso a escolha por um emprego tão insólito (mal sabe ela que ele é o verdadeiro autor das cartas).

De qualquer sorte, o filme forja essas situações que pouco têm de engraçadas, mas que assim o querem. Se Sami Boaujila, como o atormentado apaixonado, é acometido do mesmo mal de roteiro, quem melhor se sobressai é Nathalie Baye vivendo a mãe da protagonista, agindo somente por impulso, disposta a encontrar um amor e resgatar sua autoestima, rendendo boas tiradas, como quando persegue Jean na rua de camisola e descalça.

O filme conta ainda com uma série de reviravoltas, como se houvesse uma necessidade de a todo momento surpreender com uma perspectiva nova para os personagens. Cansa na mesma medida em que pelo menos dá ritmo à narrativa, mas perde muitas vezes em plausibilidade, em detalhes que muitas vezes passam despercebidos o expectador. E isso sempre carrega um quê de enganação.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Festival Varilux (parte III): Tons de negro


Vênus Negra (Vénus Noire, França/Itália/Bélgica, 2010)
Dir: Abdellatif Kechiche



Os filmes anteriores do tunisiano Abdellatif Kechiche sempre estiveram interessados em mostrar a forma como imigrantes árabes lutam para viver na Europa contemporânea (como revelou no ótimo O Segredo do Grão e em A Culpa é do Voltaire), em especial na França, país onde o cineasta cresceu e se formou.

Em Vênus Negra ele faz um caminho mais audacioso. Retorna a inícios do século XIX para contar a história da sul-africana Saartjie, de porte físico avantajado, principalmente nas nádegas, trazida para Londres onde era exibida num espetáculo grotesco como uma selvagem. Junta-se a isso o fato dela possuir uma genitália deformada e protuberante que posteriormente será explorada também como mais um fator exótico a ser exposto.

Por mais que suas apresentações sejam uma farsa (nos espetáculos ela fingia ser uma besta fera que só entendia seu idioma natal e estava sendo domesticada por seu dono, embora tivesse plena consciência do que estava fazendo), é visível na personagem toda a humilhação e sofrimento que tem de passar. Nesse sentido, a personagem encontra na novata Yahima Torres, principalmente através de seu olhar, a expressão exata do rebaixamento, numa atuação que exige muito de entrega física e emocional.

Se os primeiros espetáculos em Londres eram feitos para plateias populares, ela será confrontada também com a alta sociedade francesa, da mais fina e rica à mais vulgar, num freak show dos mais aviltantes. Seus aportes físicos eram comuns nas mulheres da tribo hotentote, da qual fazia parte, mas era tratada como aberração, servindo não só para a curiosidade racista europeia, como também para estudos científicos que tentavam provar a semelhança dela e de seu povo com primatas, forma de atestar a inferioridade dos negros (ela, inclusive, é batizada e recebe um nome católico, Sarah). É bom lembrar que poucos anos depois a Europa avança no processo de neocolonização da África e Ásia.

Com a força de suas imagens, Vênus Negra se estende por mais de 2 horas e meia, como se Kechiche quisesse imprimir um tom geral de desconforto, muito embora se mais enxuto, o filme teria um ritmo mais palatável. De qualquer forma, o efeito é potencializado pelo constrangimento que somos obrigados a presenciar. Por isso é que quando o filme chega ao fim, o silêncio é mortal na plateia.


PS: Cenas exibidas durante os créditos finais são importantíssimas e sintomáticas da tentativa de fazer justiça a uma mulher retirada do continente africano, seu lar, para se expor e servir ao bel-prazer do homem branco, representativo latente de milhares de tantos outros negros que tiveram o mesmo destino trágico, também por caminhos diferentes, mas da mesma forma desolador.


Um Gato em Paris (Une Vie de Chat, França/Holanda/Suíça/Bélgica, 2010)
Dir: Alain Gagnol e Jean-Loup Felicioli



Um Gato em Paris se apresenta como o “primeiro filme policial de animação para crianças”, como diz o material de divulgação. Nesse sentido, já de início percebemos um tratamento mais infantil dada à história do gato de vida dupla que de dia vive com uma garotinha e de noite acompanha um ladrão em suas aventuras pelos telhados de Paris.

O público-alvo do longa justifica a cópia dublada em português (embora não tenha visto nenhuma criança durante a exibição) e um texto bastante mastigado e redundante na forma como desenvolve os personagens e seus dilemas, além de distinções bem maniqueístas entre eles. O roteiro inclui um perigoso assaltante e sua gangue numa tentativa de roubar uma peça cara de museu. Por coincidência, esse mesmo criminoso matou o pai da menininha cuja mãe é policial e faz de tudo para prender o homem e fazer justiça.

É aí que o tom policial toma conta da história fazendo com que os personagens se cruzem no meio do roteiro, apostando numa série de coincidências. Ainda assim, não há nada de absurdo na trama que se desenrola com ritmo envolvente e bom senso de aventura, ajudado pelos econômicos 60 minutos de duração e embalada por uma trilha sonora digna dos melhores thrillers e muito bem utilizada na narrativa.

Num momento em que se celebra tanto a animação digital, Um Gato em Paris possui um traço bastante tradicional, se utilizando disso para dar forma a seus personagens; o ladrão, por exemplo, por sua enorme agilidade e senso de movimento, possui contornos físicos mais arredondados. Além disso, há um uso muito interessante da projeção de sombras nas paredes, reforçando o efeito sombrio da obra. Os diretores utilizam com muita inteligência a técnica da animação. Numa sequência, por exemplo, em que os personagens estão numa casa imersos na escuridão total, todos são desenhados somente com linhas brancas sobre um fundo preto. O efeito é dos melhores.

Por mais que se disponha a agradar as crianças com sua trama, há, por exemplo, uma inusitada referência ao cinema de Tarantino: um dos membros da gangue se revolta porque não quer que seu codinome seja Sr. Banana, da mesma forma que o personagem de Steve Buscemi não queria ser chamado de Mr. Pink em Cães de Aluguel. São detalhes assim que fazem ver uma animação não só direcionada para crianças, mas que pode e deve agradar a outros grandinhos por aí.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Festival Varilux (parte II): Jogos perigosos


Xeque-Mate
(Joueuse, França/Alemanha, 2009)
Dir: Caroline Bottaro



Xeque-Mate começa como uma história inusitada. Arrumadeira de classe baixa que trabalha num pequeno hotel e em outras casas, de repente, se vê encanta pelo jogo de xadrez quando arruma o quarto de um casal enquanto eles estão jogando. Existe um romantismo na forma como eles se divertem durante o jogo que encanta Hélène (Sandrine Bonnaire – homenageada pelo Festival).

Na verdade, ela nem sabe jogar; começa aprendendo sozinha e vai se aperfeiçoar no jogo de tabuleiro com a ajuda do médico aposentado Dr. Kröger (numa aparição inusitadíssima do norte-americano Kevin Kline). Ranzinza e arrogante, ela vai convencê-lo a gastar seu tempo ensinando-a as manhas do xadrez.

Ao mesmo tempo, o filme assume um tom um tanto feminista, principalmente quando a personagem descobrir que a dama “é a mais forte de todas as peças”, como ela mesma diz e repete durante o filme. Ao precisar lidar com o marido ciumento e as crises da filha adolescente, ela vai reafirmar o seu próprio valor como mulher, mãe e esposa.

Mas o grande problema do filme é nunca tratar os dramas de sua personagem, ou das pessoas a sua volta, com a consistência e interesse necessários. Exemplo disso é quando a filha termina com o namorado, ela passa a acusar os pais por serem pobres, o pai grita com a menina, pai e mãe transam na mesa da cozinha e fica tudo por isso mesmo. Ou então quando a chefe de Hélène briga com ela pela displicência com que vem realizando seu trabalho, ela lhe garante que vai melhorar e acabou-se a questão.

Falta coragem em assumir um tom mais forte e contundente na forma de lidar com esses conflitos. Consequentemente, a própria postura de superação que ela mantém diante da necessidade de ser uma boa jogadora de xadrez perde até sua razão de ser. E mesmo a atuação de Sandrine Bonnaire parece engessada numa única expressão de determinação durante todo o filme.

Pior ainda é quando Xeque-Mate assume um tom de enfrentamento, inserindo a protagonista num improvável torneio regional de xadrez, tentando nos convencer do talento nato da mulher para aquele jogo, revelado em tão pouco tempo, além de apresentar um final com direito a lição de moral. É como se o filme fosse decaindo em qualidade até chegar bem fundo no poço. A dama é forte, sim, mas é o jogo narrativo no qual está inserido que já parece perdido.


Os Nomes do Amor (Le Nom des Gens, França, 2010)
Dir: Michel Leclerc



Os Nomes do Amor começa com uma colagem muito interessante em que os protagonistas Bahia Benmahmoud (Sara Forestier) e Arthur Martin (Jacques Gamblin), ao se apresentarem, relatam também a trajetória de seus respectivos pais, como forma de demonstrar suas origens, e os desenham como pessoas improváveis que se conheceram pela força do acaso, trazendo histórias trágicas que ganham um tratamento bem-humorado.

Já nesse início é possível notar o humor negro inerente à história e o tratamento “politicamente incorreto” dado a temas como abuso sexual de crianças ou de órfãos que perderam os pais em Auschwitz. Algumas piadas, nesse sentido, até que funcionam, mas rapidamente o filme revela seu texto de extremo mal gosto e, pior de tudo, ainda faz de seus personagens pessoas estúpidas a fim de extrair daí uma certa comédia fincada no escracho.

O filme se debruça no encontro desastrado entre os dois e insiste numa relação que nunca soa o mínimo verossímil. Ele é um especialista em doenças provocadas por aves e ela uma garota, um tanto ninfomaníaca, que tem como projeto de vida transar com homens fascistas e de direita a fim de converta-los a causas mais nobres e não interesseiras/capitalistas/racistas. Além de já contar aí com estereótipos bem bobos, o próprio plot do filme é babaca por si só.

A bagunça dos acontecimentos que o filme vai sucedendo sem um rumo certo até tenta acertar na relação que estabelece a todo o tempo com o passado, que adentra a narrativa, por exemplo, com a presença dos antepassados dos protagonistas e até de suas versões mais jovens interagindo no mundo presente, numa montagem que mantém um bom ritmo.

Mas tudo isso está à mercê de um texto fraquíssimo que se quer ácido, sem falar quando tenta assumir um discurso politizado sobre, por exemplo, as relações entre árabes e judeus e as eleições presidenciais francesas. Os resultados parecem sempre pífios.

Sofrem com isso os protagonistas, obrigados a girar o tempo todo em volta de um mesmo propósito de riso fácil e escrachado. Numa determinada cena, Bahia está no caixa do supermercado com Arthur quando descobre que esqueceu de comprar alguma coisa; deixa ele lá e lembra de alguma coisa que esqueceu em casa, vai lá, toma banho, sai na rua e só quando entra no metrô percebe que está pelada. Apesar da beleza escultural da moça (e do despudor do cinema francês em não esconder o nudismo completo dela), o tom é tão forçado que parece até uma afronta para um filme disposto a criar uma narrativa viva e humorada. O efeito é contrário, aquele riso constrangedor no final.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Festival Varilux (parte I): Pais e mães


O Pai dos Meus Filhos (Le Père de Mes Enfants, França/Alemanha, 2009)
Dir: Mia Hansen-Løve



Grégoire Canvel (Louis-Do de Lencquesaing) é o produtor de cinema que todo diretor gostaria de ter: ele defende com muito afinco os poucos e alternativos projetos que tem nas mãos, muito embora uma crise financeira violenta esteja cada vez mais perto de arruinar todo o negócio.

E por mais que isso represente um gravíssimo problema que o consome noite e dia, Grégoire tenta ao máximo manter uma tranquilidade no seu cotidiano através de uma postura sempre positiva em relação à resolução de seus problemas, mesmo que por dentro ele esteja destroçado.

Mas isso só parece se revelar na metade do filme quando uma reviravolta inesperada toma de assalto a narrativa. Enquanto isso, e mesmo depois, Mia-Hansen-Løve nos conta sua história com uma naturalidade e complacência invejáveis, desenhando seus personagens na medida em que eles vão ganhando mais espaço em tela. Como é o caso da filha mais velha que vai descobrir alguns segredos escusos do pai.

E por falar em filhas, a relação de Grégoire com as três meninas, em especial com as duas mais novas e adoráveis, transborda carinho, e em nenhum momento duvidamos de seu amor por elas e pela esposa. E esse tom família enriquece ainda mais o filme e, principalmente, seu protagonista. Existe, na verdade, um grande carisma por ele, parece uma unanimidade para todos que o conhecem.

Um filme marcadamente intimista pelo olhar fresco e atento às relações humanas. Numa sequencia curta e muito objetiva, a luz em toda a vizinhança vai embora; eles não desanimam e decidem sair na rua para olhar as estrelas, quando a luz logo retorna e acaba a festa; é quando uma das meninas lamenta: “é a vida”. Vida que segue, apesar dos percalços.


Copacabana (Idem, França/Bélgica, 2010)
Dir: Marc Fitoussi



Quem diria, Isabelle Huppert é boa fazendo comédia também. A atriz empresta sua forte presença a uma personagem improvável, uma mãe temperamental e expansiva, tentando reconquistar a consideração da filha que vai se casar, mas não quer a mãe presente na festa porque teme passar vergonha (e lhe diz isso pessoalmente). Quando ela se atrasa uma hora e meia para uma entrevista de trabalho numa confeitaria e a dona a despensa por isso, ela simplesmente derruba vários doces das prateleiras no chão. Daí se nota o tipo da peça.

Ela é tão estranha que não gosta de seu nome de batismo, Elisabeth (segundo ela, soa muito “rainha da Inglaterra”), e prefere ser chamada de Babou. Sua persona incomoda pela excentricidade e um comportamento na maioria das vezes sem noção, como aparecer num jantar vestida de indiana ou o breve relacionamento com um homem que trata como um mero objeto sexual. É de momentos assim que o filme tira sua graça, às vezes um pouco caricata (porque a personagem, por si só já é exagerada), mas nunca ridicularizante.

Babou encontra na atriz francesa (uma das melhores na atualidade) uma intérprete que equilibra muitíssimo bem o caricatural e o racional, numa personagem que vai se revelar muito mais do que uma mulher simplesmente inoportuna. Apesar de tudo, há um bom coração ali.

As referências ao Brasil surgem porque Babou é fascinada pelo país, principalmente por sua música, embora ela nunca tenha estado na terra da bossa nova, ritmo esse que toma conta da gostosa trilha sonora do filme (e uma das coisas mais engraçadas aqui é ver Isabelle Huppert dançando ao som do ritmo brasileiro da forma mais desajeitada possível; uma determinada sequência no final é impagável nesse sentido).

Apesar de Huppert elevar bastante o filme com sua presença marcante, Copacabana é uma comédia irregular, principalmente quando acrescenta outros personagens que pouco contribuem para a história. Mas diverte bem, e por isso só já vale o ingresso.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Gênese da cisão

X-Men: Primeira Classe (X-Men: First Class, EUA, 2011)
Dir: Matthew Vaughn


Depois de uma ótima trilogia e um péssimo filme independente (X-Men Origens: Wolverine), mais um que envolvesse a história dos X-Men parecia algo cansativo, tipo de produto que se faz por conta da gana de um estúdio. Surpreendentemente, X-Men: Primeira Classe é um prequel agradabilíssimo por aquilo que consegue acrescentar à série e pela forma como desenha muito bem personagens que já conhecemos um pouco nos outros projetos.

Não à toa o filme começa com a sequência de Erik (posteriormente Magneto) ainda criança sendo separado da mãe num campo de concentração, momento visto no segundo filme da trilogia. Mas aqui sua história vai ser mais explorada, da mesma forma que a de Charles Xavier. Na verdade, um dos grandes embates do filme se dá entre os dois, ideologicamente.

Se Charles e Erik se juntam para enfrentar o algoz da vez, Sebastian Shaw (que deseja acabar com a raça humana, provocando um conflito nuclear, em prol da supremacia para os mutantes), ambos também carregam intenções bem diferentes. O primeiro prefere o caminho da paz e da convivência tolerante, enquanto Erik pensa na superioridade da raça mutante, alimentado pelo ódio aos humanos. Está feito o embate.

É daí que surge a formalização de uma escola que recruta os mutantes soltos no mundo para deixarem de se esconder e se tratarem como iguais. E então, surge outro embate bastante caro à mitologia dos X-Men: o autorreconhecimento da identidade mutante. Enquanto uns se aceitam como são, outros procuram fugir de sua natureza. Nesse sentido, Mística e Fera são os personagens que melhor representam esse conflito interior, principalmente pela aparência “diferente” que carregam.

Entre todas essas discussões interessantes, o filme ainda mantém um ritmo sempre interessante, com ótimos momentos de lutas, como a tentativa de interceder o navio de Sebastian, a emersão do submarino e toda a sequência na praia, em especial a parte que envolve os mísseis.

Magneto e Xavier ganham em James McAvoy e Michael Fassbender, principalmente neste último, intérpretes de peso para dar consistências às camadas ideológicas de seus personagens, assim como Jennifer Lawrence, que praticamente não luta, mas possui presença, numa personagem importante, e uma grande maturidade como atriz.

Além disso, o filme traz uma louvável construção de narrativa inserida no contexto da Guerra Fria, especificamente durante a crise de mísseis que quase leva o mundo a uma III Guerra Mundial. Com inteligência, ótimo desenvolvimento de personagens e adrenalina bem dosada, X-Men: Primeira Classe possui grandes momentos e renova muitíssimo bem uma franquia que ainda parece ter mais a oferecer.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Solene mistério

Estrada Perdida (Lost Highway, EUA/França, 1997)
Dir: David Lynch


Num sentido muito prático para mim, as experiências sensoriais de um filme de David Lynch devem se sobrepor às explicações lógicas de suas histórias, embora a busca por essas chaves de interpretação são sempre bem-vindas. Nesse sentido, Estrada Perdida parece se destacar um ponto a mais na filmografia do cineasta pelo extremo rigor com que ele lida com os elementos fílmicos, alcançando resultados intensos sempre em prol do bizarro e do misterioso.

Fred Madison (Bill Pulman, no provável melhor papel de sua carreira) é um músico, vive com a bela e misteriosa Renée (Patricia Arquette) e recebe em casa uma fita de vídeo que mostra ele e a esposa dormindo em seu quarto; eles não fazem ideia de quem possa ter filmado aquilo. Mas esse, claro, é apenas um começo para uma trama repleta de mistérios e reviravoltas.

Mas fica evidente o desconforto da pessoa de Fred mesmo antes do incidente, como se ele fosse atormentado por alguma coisa que nunca chega a ser explicitado (como muita coisa já que estamos falando de um filme de Lynch). Enquanto isso, Renée surge como uma beldade que parece temer o marido, a pesar de seu jeito femme fatale.

A reviravolta que acontece logo após a um assassinato bastante brutal dá uma reviravolta também na cabeça do espectador, com a narrativa que parte para caminhos bastante tortuosos, e por isso mesmo, sempre surpreendentes naquilo que será o próximo passo dos personagens (principalmente quando o casal parece se transmutar em outras pessoas).

Mas como disse anteriormente, menos importa as razões para tais resoluções, e mais a força das imagens que Lynch cria. Há todo um tom solene no filme que avança a narrativa com bastante placidez (a própria luz do filme parece muito etérea). Nos momentos mais aterrorizantes, isso faz com que a apreensão seja elevada a níveis bem altos, como as aparições do homem baixinho com rosto pálido, em especial numa festa, ou, depois de um pesadelo, quando Fred acorda, olha para a mulher e vê o rosto do mesmo homem pálido no lugar do rosto dela.

Lynch filma tudo isso com muito refinamento, planos muito bem trabalhados, ao mesmo tempo em que transparece simplicidade ao fazer isso, ou pelo menos sem chamar atenção para um certo estilismo. É esse rigor de encenação que tanto chama atenção, em prol de uma narrativa muito marcada pelo sensorial.

Nesse sentido, há um uso espetacular da trilha sonora como reforço para essa atmosfera enigmática. Um exemplo é a já citada cena do encontro de Fred com o sujeito esquisito na festa. Nesse momento, o som diegético da música no local desaparece enquanto eles conversam, dando lugar ao acorde sombrio da trilha que reforça toda a apreensão e terror que emana da cena (com o diálogo sendo algo de assombroso). Além disso, a banda sonora traz algumas músicas bem encaixadas, como David Bowie na abertura como a densa I’m Deranged, ou Marilyn Manson cantando I Put a Spell on You, numa versão punk.

David Lynch nos presenteia com uma obra extremamente instigante, mas, acima de tudo, bastante prazerosa pela forma como manipula os elementos da linguagem fílmica. Determinadas cenas (e dúvidas) ficam com a gente por muito tempo, efeito incontestável para classificar os grandes filmes.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Filmes de maio


1. Thor (Kenneth Branagh, EUA, 2011) ***

2. Turnê (Mathieu Amalric, França, 2010) ****

3. Em um Mundo Melhor (Susanne Bier, Dinamarca/Suécia, 2010) ***½

4. Viagem à Itália (Roberto Rossellini, Itália/França, 1954) ***½

5. Restrepo (Tim Hetherington e Sebastian Junger, EUA, 2010) **½

6. O Sequestro de Um Herói (Lucas Belvaux, Bélgica/França, 2009) ***½

7. Bebês (Thomas Balmès, França, 2010) ***

8. O Retrato de Dorian Gray (Oliver Parker, Reino Unido, 2009) **

9. Serpico (Sidney Lumet, EUA/Itália, 1973) ****

10. Reencontrando a Felicidade (John Cameron Mitchell, EUA, 2010) ***½

11. O Leão de Sete Cabeças (Glauber Rocha, Brasil/Itália/França, 1970) ***½

12. Feliz que Minha Mãe Esteja Viva (Claude Miller e Nathan Miller, França, 2009) **½

13. Obsessão (Luchino Visconti, Itália, 1943) ***½

14. Os Agentes do Destino (George Nolfi, EUA, 2011) **½

15. Caminho da Liberdade (Peter Weir, EUA, 2010) ***

16. Diário de uma Garota Perdida (Georg Wilhelm Pabst, Alemanha, 1929) ****

17. A Ópera dos Três Vinténs (Georg Wilhelm Pabst, Alemanha, 1932) ****

18. Como Arrasar um Coração (Pascal Chaumeil, França/Mônaco, 2010) **½

19. Velozes e Furiosos 5 (Justin Lin, EUA, 2011) **

20. Bollywood Dreams – O Sonho Bollywoodiano (Beatriz Seigner, Brasil/Índia/ EUA, 2011) **

21. Chuva (Paula Hernández, Argentina, 2008) ***

22. El Topo (Alejandro Jodorowsky, México, 1970) ****½

23. Piratas do Caribe – Navegando em Águas Misteriosas (Rob Marshall, EUA, 2011) **½

24. Padre (Scott Charles Stewart, EUA, 2011) **½

25. Santa Sangre (Alejandro Jodorowsky, México/Itália, 1989) *****

26. Terra de Ninguém (Terrence Malick, EUA, 1973) ****

27. O Primeiro que Disse (Ferzan Ozpetek, Itália, 2010) **½

28. A Terra Treme (Luchino Visconti, Itália, 1948) ****

29. O Leopardo (Luchino Visconti, Itália/França, 1963) *****

30. O Poder e a Lei (Brad Furman, EUA, 2011) **


Revisões:

31. Assim Caminha a Humanidade (George Stevens, EUA, 1956) ****

32. Oldboy (Park Chan-wook, Coreia do Sul, 2003) *****