sábado, 6 de setembro de 2014

CachoeiraDoc – Parte II



Homem Comum (Idem, Brasil, 2014) 
Dir: Carlos Nader



Há maneiras tradicionais e objetivas de documentar a vida de pessoas ordinárias, tema de muitos filmes recentes (grande foco do cinema magistral de Eduardo Coutinho). Carlos Nader, com seu Homem Comum, mistura seus próprios anseios num filme curioso e nunca óbvio, que coloca em xeque a própria faceta do sujeito simples.

A ideia original era construir um filme em que o diretor abordaria aleatoriamente caminhoneiros para lhes questionar sobre o sentido da vida, ou do absurdo dela. Uma proposta com fundo claramente existencialista. Mas um dos entrevistados passa a ganhar a atenção de Nader, e o filme torna-se o retrato de uma amizade que nasce entre ele e Nilson de Paula, um homem desses, “comum”.

Em 1995, quando se conheceram, Nilson era casado e tinha uma filha pequena. Nader passa a se aproximar da família dele, registrando sempre que podia esses encontros com câmera amadora (chegou até a filmar posteriormente o enterro da esposa de Nilson, a pedido dele próprio). A relação de intimidade que se estabelece ali é fundamental para que o filme seja também sobre as dúvidas que perturbam o próprio cineasta.

Na construção narrativa do filme, o diretor, obcecado por questões filosóficas, intercala trechos do filme A Palavra, clássico do diretor dinamarquês Carl T. Dreyer, e ainda uma encenação em inglês da mesma história, só que a seu modo, mais dramática. Nader expõe no filme suas próprias impressões e dúvidas existenciais, mas sem o peso da densidade filosófica que uma exposição sobre esses temas pode suscitar. Ele prefere utilizar os rumos de vida daquele sujeito “simples” (que ganha cada vez mais camadas), porque é ali, como em cada um de nós, que reside essa complexidade de perto.

Homem Comum explora ainda as muitas possibilidades de encenação, seja nos direcionamentos que pede ao próprio Nilson e sua família, seja na intercalação das narrativas ficcionais que incorpora a sua narrativa fragmentada. E constrói um filme surpreendente usando o aparente banal como ponto de reflexão sobre a condição do homem no mundo, numa obra, acima de tudo, muito carinhosa com seus personagens.


Luíses - Solrealismo Maranhense (Idem, Brasil, 2013) 
Dir: Lucian Rosa
 

Num filme provocativo por natureza, exala de Luíses – Solrealismo Maranhense uma vontade sincera e muito grande de balançar os ânimos do público contra todos os problemas sócio-políticos que se amontoam no Maranhão. Realizado por um coletivo e com recursos mínimos (pouco mais de R$ 1.200), existe claro um propósito de denúncia política muito forte. E esse é sempre um perigo narrativo muito grande.

O filme evoca a lenda maranhense da serpente adormecida que vive debaixo de São Luís. O animal cresce tanto que um dia irromperá da terra e afundará a ilha. É o gancho ideal para metaforizar a própria ira e indignação dos grupos desgostosos com os rumos políticos do estado (pegando carona também em todas as manifestações que tomaram as ruas do Brasil desde o ano passado). É uma forma também de propor um movimento artístico-politizado, o solrealismo, com sua roupagem tropicalista surreal.

Como filme de combate, portanto, Luíses agrega outras imagens e intervenções, na sua colcha rendada de discursos ora eufóricos, ora centrados. Estamos aqui longe de dizer que as mazelas sociais, o controle do estado sobre os meios de comunicação e a predominância de grupos políticos no poder não sejam temas vitais e que estão no cerne dos problemas enfrentados pela população de São Luís.

No entanto, por mais que o filme se proponha a intervenções ficcionais e provocativas que tentam dar conta dos enfrentamentos práticos diários de muita gente (transporte público caótico, violência crescente, condições de moradia precária), além de imagens surreais, quase experimentais no seu formalismo poético, o tom panfletário ainda está ali, e por vezes de forma muito simplista. Ou antes, tem tantas coisas para apontar que pouco consegue formular solidamente. 

Não deixa de ser uma maneira direta de expor situações complexas e que exibe a vulnerabilidade de uma população (notadamente os mais pobres). Porém falta certo apuro na maneira como esses elementos se conformam e se interconectam numa narrativa que suscita tantas questões urgentes.

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