quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Mostra Cinema Conquista – Parte II



Riocorrente (Idem, Brasil, 2013)
Dir: Paulo Sacramento 




É muito pertinente ver num filme brasileiro uma vontade tão grande de registrar e dar conta da sensação de morar numa grande cidade de um país tão desigual como o Brasil.
Riocorrente busca fazer um retrato impetuoso dessa cidade cão que São Paulo pode ser, num filme que nos chega sob a marca do simbolismo, exalando brutalidade a cada cena. Por isso é uma pena enorme que uma proposta tão corajosa emperre num problema grave de roteiro: falta história e faltam personagens.

Os tipos quase marginais que Sacramento escolhe para guiar sua narrativa são cheios de inquietações e vibrações, mas é muito difícil dimensioná-los no filme. Renata (Simone Iliescu) divide-se num relacionamento com seu namorado Marcelo (Roberto Audio) e com o mecânico Carlos (Lee Taylor). Esse último, por sua vez, possui uma proximidade quase paternal com o menino de rua Exu (Vinicius dos Anjos), a marginalidade estampada em sua feição dura. Todos sujeitos à vibração esmagadora de São Paulo.

Sacramento apresenta uma condução curiosa na forma como cria uma série de metáforas visuais para representar a ebulição da cidade. Riocorrente rege-se pelo signo do fogo, elemento presente em várias cenas (a do carro incendiado em disparada na estrada é uma das imagens mais fortes do filme em termos simbólicos). A iminência da combustão parece guiar esses personagens, em especial Marcelo e sua agressividade latente.

O problema é quando toda essa vontade de mostrar a cara bruta da cidade esbarra num mero preciosismo simbólico de cenas que gritam a “força” do filme. E todo o decorrer da história parece exercitar o mesmo dispositivo simbólico, tornando a narrativa morosamente redundante.

É difícil entender, se importar ou acreditar naquelas pessoas que se machucam, às vezes de forma a mais gratuita possível. Parecem reféns de um estado de coisas socialmente conturbadas, mas tudo que o filme nos dá são possibilidades muito abertas de interpretação.

Certamente este não é um filme clássico de personagens realistas e bem aparados, mas o filme acaba ruminando o tempo todo as mesmas questões e não parece haver consistência nos atos e comportamentos daquelas pessoas. O filme termina e não se sabe ao certo aonde quer chegar.


Tatuagem (Idem, Brasil, 2013) 
Dir: Hilton Lacerda


 
Vem de Pernambuco mais um belo exemplar de cinema com personalidade. Hilton Lacerda, à frente de seu primeiro longa-metragem de ficção depois de um logo trabalho como roteirista nos filmes do conterrâneo Cláudio Assis, chega com um filme que faz alarde, mas cercado de afetos.

Tatuagem vem (e vence) pela marca do escracho. Logo em um dos primeiros números apresentados pela trupe de teatro Chão de Estrelas, um dos personagens diz que “nossa arma é o deboche”. É a dica para que encaremos com muito bom humor e anarquismo contestador as apresentações do grupo, cheios de um subtexto (pan)sexual – e por isso político.

Clécio (Irandhir Santos) é o líder do grupo que batalha para continuar mantendo de pé o seu ganha-pão com os poucos recursos de que dispõe, e ainda tendo de enfrentar a censura militar em fins dos anos 1970. Um dos grandes acertos de Larceda é nunca transformar seu filme numa mera bandeira contra os ditames da Ditadura, mas antes em dar relevância a um tipo de comportamento duramente oprimido, inclusive socialmente.

O romance que vai surgir entre o protagonista e o soldado Fininha (Jesuíta Barbosa), cunhado do melhor amigo de Clécio, o espalhafatoso Paulete (Rodrigo Garcia), já dá conta de contrapor lados que se chocam, mas ganhando nuances mais picantes aqui. É, portanto, um filme que clama por liberdade, artística e sexual, via comportamentos que desafiam a moral vigente. Lacerda conduz com muita delicadeza o que está na esfera dos sentimentos, e as pessoas que se reúnem em torno do grupo não deixam de formar uma bela e desordenada família, apesar das desavenças que surgem em certos momentos.

Desprovido de todo moralismo, o filme navega pelo âmbito do questionamento de valores e hipocrisias sociais. A Polka do Cu, canção-desbunde cujo número é apresentado na parte final (e deflagrador de consequências duras), é um desses momentos não só carregado de coragens e escracho, mas que representa muito bem uma visão de mundo que aquelas pessoas (e o filme) compartilham harmoniosamente.

Há de se destacar um cuidado muito conceitual na textura do filme vinda de uma fotografia em tons granulados que denunciam a época passada (quase como um registro nostálgico) e também um momento ainda opressor, apesar da alegria que aquele grupo quer propagar com seus espetáculos. A trilha sonora, uma feliz parceria com DJ Dolores, é outra marca que faz a ponte do filme com o gênero musical, porém de forma muito pessoal. 

Dos trabalhos que roteirizou para Cláudio Assis, Lacerda mantém a veia contestadora, de tons anárquicos que afrontam o mais tacanho dos moralismos. Mas Tatuagem é também dotado de um lirismo e carinho por seus personagens que o coloca bem longe daquilo que Assis já dirigiu (com exceção, talvez, do mais poético A Febre do Rato). Nesse equilíbrio de atmosferas, Larceda acrescenta mais uma peça na filmografia pernambucana recente que faz o cinema nacional pulsar, contestadora e afetuosamente.

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