quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Mostra SP – Parte II



Winter Sleep (Kis Uykusu, Turquia/Alemanha/França, 2014)
Dir: Nuri Bilge Ceylan


Winter Sleep
é um longo e denso estudo de personagens, tipo de filme que busca fisgar o espectador pela imersão que faz na psicologia de seres de carne e osso, desnudados principalmente naquilo que possuem de condenáveis, ainda que não percebam essas nuances. Mas nada de truques baratos de simbolismos ou códigos arquetípicos aqui, nem sentimentos escancarados. Ceylan prefere revelar seus personagens através dos diálogos e situações cotidianas e parece não se importar com o tempo que isso leva.
  
Há toda uma verborragia de onde os personagens deixam escapar suas vontades, anseios, opiniões e posições; também transparecem aquilo que pensam sobre o outro, sua personalidade e atitudes, muitas vezes julgando e apertando feridas. Não é um filme fácil, tanto pela duração – são mais de três horas de “confrontos” pessoais –, quanto pela aspereza das relações que se estabelecem ali, muito sentida nas entrelinhas do que é dito e no como é dito.

É quase o mesmo caminho seguido pelo filme anterior do cineasta, o maravilhoso Era uma Vez na Anatólia. Uma das diferenças é que Winter Sleep concentra-se em um grupo menor de personagens, embaraçados em seus conflitos. O filme acompanha a rotina de Aydin (Haluk Bilginer), escritor e dono de uma pequena hospedaria na áspera e altiplana região da Anatólia, parte oeste da Turquia. Vive com sua jovem esposa Nihal (Melissa Sozen) e com a irmã Necla (Demet Akbag), recém-divorciada.

Palma de Ouro do último Festival de Cannes, o filme chega à Mostra SP com o hype lá em cima. Belissimamente fotografado, as cores quentes dão o tom das discussões cada vez mais acaloradas – em contraponto ao frio glacial que faz do lado de fora das casas. 

Ainda assim, há muita frieza no que se diz e em como os personagens se portam, especialmente em Aydin e sua arrogância velada, seu cinismo senhoril, numa espécie de autoimposta superioridade diante dos que o cercam. Winter Sleep nunca deixa de ser duro, uma quase contradição com a beleza e apuro com que Ceylan filma esse microcosmo tão específico. Um filme de peso, ainda que excessivamente demorado.


Permanência (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Leonardo Lacca 


 
Permanência é muito eficiente em estabelecer um clima, mas é uma pena que esbarre na sua própria intenção. O filme busca captar uma sensação de desconforto, permeado por um desejo latente de duas pessoas, impedidos pelas circunstâncias. Ao mesmo tempo em que isso é o propósito do filme, é também o que deixa a história no mesmo tom, pouco avança nos conflitos dos personagens.

Ivo (Irandhir Santos) é um fotógrafo pernambucano que viaja a São Paulo para sua primeira exposição solo numa galeria. Fica hospedado na casa de sua ex-mulher, Rita (Rita Carelli), já casada com outro homem (Silvio Restiffe). Há suspeita de uma término mal resolvido entre Rita e Ivo. O passado não os deixa em paz.

De fato, há uma sintonia evidente entre os dois protagonistas, algo de atração e repulsa que mexe com seus sentimentos, reavive impulsos adormecidos. Mas se logo nos primeiros dez minutos de projeção, quando eles se reencontram, essa inquietude se instaura, pouca coisa o filme consegue construir para além disso. É uma narrativa toda anticlimática.

Resta a Ivo respirar o ar de uma cidade pulsante e mecanizada, começa um caso fortuito com uma mocinha bonita que trabalha na galeria e ainda tem de se confrontar com o pai distante que lhe teve fora do casamento. Mas nada disso torna-se uma grande questão, uma rede de conflitos que se amontoam e pesam. É um terreno parcimonioso esse em que o filme prefere se movimentar, modesto demais talvez.

Não deixa de ser bem articulada a forma como Leonardo Lacca, à frente de um primeiro longa-metragem, estabelece essas relações com muito cuidado e atenção aos personagens. Mas também não deixa de haver certo maneirismo nas atuações que se esforçam em deixar evidente essa sensação de desconforto, escorregando para um tom meio forçoso, demarcado demais. Permanência é esse filme (sobre gente) que vacila.


Filha (Dukhtar, Paquistão, 2014)
Dir: Afia Nathaniel 


A história já não é das mais instigantes: garota pequena é obrigada a se casar com um velho líder de um grupo extremista no Paquistão. É o velho tema dos casamentos arranjados que ganha um ar de thriller aqui porque a mãe da garota logo foge com a garota para impedir tal absurdo (embora seja ato comum em países árabes). O filme, então, torna-se um road movie involuntário.

Mas Filha é negativo em vários aspectos: roteiro rocambolesco, texto fraco e expositivo, abusa do maniqueísmo e tem atores fraquíssimos que não conseguem dar nuances a personagens já convencionais por si só.

A diretora Afia Nathaniel, sua estreia no longa-metragem, filma da forma mais banal possível, apostando no senso de urgência que a fuga provoca, mas querendo sempre aliviar a barra de suas protagonistas (a cena final é desastrosa nesse sentido). Curioso que no meio de todo o perigo elas encontram e se afeiçoam a um rapaz que dirige uma caminhonete toda enfeitada de bugigangas cor-de-rosa, elemento kitsch que injeta certa estranheza naquela correria. 

Há também a convencional opção em contrapor a dureza da vida e do destino daquela garota com a ingenuidade e fantasia do mundo infantil, uma espécie de batalha do bem contra o mal defendida pela própria narrativa que já escolheu o lado vencedor. O resultado só poderia ser rasteiro e piegas.

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