sábado, 20 de dezembro de 2014

Vida adulta

O Grande Momento (Idem, Brasil, 1958) 
Dir: Roberto Santos


Para encerrar as atividades deste ano do Cineclube Glauber Rocha, um longa brasileiro: O Grande Momento, de Roberto Pires. É um achado e tanto poder exibir um filme desses, em cópia digital restaurada (e linda!), ainda mais sendo de um de nossos cineastas clássicos de obras tão pouco vistas, discutidas e reverenciadas. Talvez as atenções concentradas em torno de Glauber Rocha, ainda mais aqui na Bahia, ofusque muita gente boa que fez coisas tão interessantes e importantes na nossa cinematografia.

Filme de uma fase que se possa chamar de pré-cinema novista, trata-se do primeiro longa-metragem dirigido por seu talentosíssimo diretor. Impressiona mesmo a segurança que Pires demonstra na construção narrativa de uma história que traz muito de um conceito neorrealista, tão forte no Brasil em fins dos anos 1950, ainda que haja muito de narrativa clássica na encenação do filme.

Esse é O Grande Momento, condizente com o seu tempo, tanto em termos narrativos quanto naquilo que coloca em questão na história que conta. Acompanhamos as desventuras de Zeca (Gianfrancesco Guarnieri, sua estreia no cinema), no dia de seu casamento, tendo de se virar para arcar com as últimas dívidas do casório. A família passa por apertos financeiros, o rapaz só vê as contas se acumulando. Ainda jovem, não sabe lidar com pressão e responsabilidades.

O casamento é esse período chave na vida. Na sociedade tradicionalista da época, os costumes são mais do que regras a seguir, são provas dadas de sua aptidão para formar família e sobreviver por conta própria. Zeca não parece ser esse homem, ainda que se esforce para isso. O impulso à vida adulta talvez seja o verdadeiro tema de O Grande Momento.

Se o Brasil passava por um período de transformação e modernização, caracterizando-se cada vez mais pelo crescimento e consolidação dos centros urbanos, São Paulo florescendo como matriz dessa nova realidade. O Grande Momento tenta captar a dificuldade de se estabelecer nesse tipo de ambiente.



Bastante influenciado pela escola italiana de composição realista, Roberto Pires parece ter aprendido a lição: leva sua câmera para a rua, desenvolve uma narrativa crua, fazendo os personagens dialogarem com seu tempo (e suas dificuldades refletem um desafio também social). Está clara a referência a Ladrões de Bicicleta justamente pela utilização do símbolo icônico que ela representa nesse momento: Zeca terá de vender seu precioso meio de transporte para pagar o que deve e passar pelo ritual do casamento, ainda que isso esteja longe do necessário para liquidar o que deve (e justo a cena do passeio de Zeca na bicicleta é icônica também por representar um último momento de liberdade, solitário, quase juvenil, em comunhão com a cidade e suas distâncias).

Porém, ao mesmo tempo, o filme possui uma construção que valoriza bastante a narrativa clássica. Salta aos olhos o apuro de mise-en-scène de Pires, ainda atrelado a uma estética de estúdio, com plano e contraplano, mas que sabe muito bem onde por a câmera, seus atores, fazendo-os se movimentar pelos ambientes, especialmente nas cenas de interiores, entre cômodos diferentes, e ainda montando tudo isso com presteza e exatidão. Trata-se de um filme exemplar nesse sentido, sem nunca querer chamar atenção para si mesmo.

Pires está longe de fazer de seu filme um petardo pessimista ou uma crítica ferrenha a uma situação de ordem social. Ao contrário, há certo humor pinçado ali (a sequência da festa de casamento alcança mesmo o pastelão e o filme quase se torna uma comédia de erros) e mesmo algo de afetuoso nas relações que se estabelecem entre os personagens (o pai austero brigando com todos, a irmã sonhadora e arredia, a mãe firme querendo resolver tudo da melhor maneira, a noiva que se sente enganada, mas também tem seu lado compreensiva). E é lá no final do filme, quando o casal entende de fato a importância dessa cumplicidade, é que o título do filme se materializa. Enquanto isso os bondes passam e é preciso correr para pegar um. 

PS: A sessão do dia 16 de dezembro coincidiu com o aniversário de seis anos do Cinema Glauber Rocha que resiste bravamente como cinema de rua, um dos pilares da cinefilia atual de Salvador. Não deixou de se também uma celebração bem digna desse espaço que merece vida longa. 

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