sexta-feira, 5 de junho de 2015

IX Cinefuturo – Parte II


 
Já que escrevo tão pouco sobre curtas (apesar de adorar o formato e acompanhar boa parte do que tem sido feito no Brasil), aproveito a competitiva baiana de curtas-metragens do Cine Futuro para arriscar algumas palavras sobre o que nos foi apresentado nessa edição. A primeira parte vai aqui:
 
 
Carranca (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Wallace Nogueira e Marcelo Matos de Oliveira


Há uma construção curiosamente dúbia em Carranca: se o filme coloca o espectador no lugar mítico que existe em torno das antigas peças produzidas artesanalmente num ambiente ribeirinho interiorano, faz isso a partir de um registro muito naturalista, sem deixar de invocar certo psicologismo dae sua protagonista.
 
Aqui, uma garota (Rafaela Souza) leva uma carranca pelo rio; deixa a peça cair na água e esta vai parar nas mãos de um estranho menino (Guilherme Silva) que lhe recusa devolver. A conversa que abre o filme dos dois velhos artesãos sobre a existência ou não do Nego d’Água acende aqui o mistério, sem que o filme queira responder bem essa questão.
 
Mas uma pergunta vital é preciso ser feita aqui: por que Carranca tem uma estrutura narrativa tão parecida com Menino do Cinco, filme anterior da dupla de diretores? Mais uma vez temos duas crianças em polos distintos, sendo que uma tomou posse de algo da outra e não quer devolver.
 
O problema nem é o “autoplágio”, mas o fato de, numa nova ambiência, Carranca não conseguir se sustentar por si só (e faz com que Menino do Cinco se torne ainda melhor como narrativa). Dá a impressão de que falta mais filme porque é difícil se importar com aquela menina, de saber por que ela se apega tanto àquela carranca, do que de fato ela tem medo. Antes de dar uma luz sobre essas questões a história termina (de forma similar a Menino do Cinco!), abortado e sem construir com mesmo afinco um núcleo próprio.
 
 
Ifá (Idem, Brasil, 2015)
Dir: Leonardo França


A pesquisa de Leonardo França com o filme ensaístico e com a dança é uma marca muito própria de seus trabalhos como diretor. Ifá é um belo desdobramento desses caminhos narrativos, mas também um filme que se confecciona através mesmo de seu processo, um dispositivo curioso e instigante.
 
Num terreiro de candomblé, um jogo de búzios é pedido pelo diretor a um babalorixá. França quer saber os caminhos do próprio filme que está fazendo. As falas do velho e suas histórias guiam a narrativa pelos caminhos performáticos que se apresentam nesse processo de ouvir e reverenciar.
 
As fábulas míticas da religião afro ganham belas representações pelos corpos e pulsões de Paula Carneiro, Michelle Mattiuzzi e Gabriel Pedreira, cada qual incorporando alguns orixás e seus comportamentos/personalidades nesse jogo de flertar com a câmera e com as possibilidades do destino que se desenham à frente.
 
França possui um olhar estético bem apurado para esse tipo de visão poética, além de muito reverencioso para com os preceitos religiosos. E o filme tem mesmo a qualidade de nunca se revelar previsível, assim como não são os caminhos dos homens e seu destino.
 
 
Ritual Pam Pam Pam (Idem, Brasil, 2014)
Dir: Ramon Coutinho

 
Ramon Coutinho e cia. (membros do Cual – Coletivo Urgente de Audiovisual) mantiveram o mistério até o fim: chegaram com esse filme que prometia um olhar para ritos ancestrais e a relação dos povos com a dança, certa contemplação do movimento do corpo que possa levar a uma comunhão com algo maior.
 
No fundo, é isso mesmo que eles apresentam aqui, só que numa perspectiva que pega o espectador desprevenido. Surpreende porque desloca o olhar de certa “religiosidade”. Com uma música de fundo retirada dos rituais indígenas e de aborígenes ameríndios, filma jovens urbanos dançando nas ruas, diante de paredões de som e das caixas acopladas em carros. Descem e rebolam até o chão em movimentos ritmados que conhecemos do funk ou do pagode.
 
É um cenário claramente urbano e, mais que isso, também periférico, reconhecível como de culturas vistas como marginalizadas. Mas não seria essa também uma forma de religião, de comunhão espiritual, de alegria do corpo (e da alma)? 

Ritual Pam Pam Pam nos faz pensar na política do corpo em movimento como forma de resistência a certo padrão cultural. Objetivo e pontual, o curta não se pretende ser nenhum tratado social, mas é louvável pelo deslocamento que sua premissa provoca.


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