segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Meu mundo em perigo

Mãe Só Há Uma (Idem, Brasil, 2016) 
Dir: Anna Muylaert


Depois de tanto sucesso e tamanha discussão em torno de questões sociais de um Brasil em transformação promovida pelo seu filme anterior, o ótimo Que Horas Ela Volta?,  Anna Muylaert não parou e já lançou seu novo trabalho, o provocador Mãe Só Há Uma, mais uma vez tendo passado pelo Festival de Berlim este ano.

Se a questão da maternidade parecia um caminho a ser traçado aqui, dando certa continuidade às discussões do longa precedente – e ainda mais com esse título, que, de certo modo, contraria a versão em inglês do título do filme anterior, “A Second Mother” ou “Uma Segunda Mãe” –, ainda que fosse um assunto transversal na trama, coexistindo com uma série de outros tópicos, em Mãe Só Há Uma a cineasta e roteirista acrescenta outro mote que parece mais forte, e de certo modo muda a direção que a narrativa passa a seguir: a questão do gênero e das identidades sexuais.

A trama gira em torno do conhecido episódio, tão noticiado à época, da mulher que sequestrou um bebê na maternidade e o criou como seu filho. Muitos anos depois, a farsa foi descoberta e o menino, já adolescente, teve de ir morar com sua família biológica enquanto a falsa mãe foi parar na cadeia. No filme, quem encarna esse garoto é Pierre (Naomi Nero), típico adolescente rebelde. Ele toca numa banda de rock, é aluno relapso, frequenta festas onde beija meninos e meninas; pinta as unhas e o contorno dos olhos, além de usar cinta-liga por baixo da calça.

É o retrato de uma nova geração de jovens que renegam rótulos sexuais, que estão experimentando novas maneiras de se relacionar com os de sua idade, de se descobrir na ânsia dos desejos, sem traumas e neuras, apenas curtindo a vida adoidado. É esse jovem que será engolido por um turbilhão de sentimentos quando descobre a verdade sobre sua origem. Mas Muylaert parece menos interessada em destrinchar os fatos e pormenores relativos ao fato e ao engano da mãe, e mais em apresentar um mundo em transformação quando a vida do rapaz já estava em movimento natural por conta da idade, dos percalços, descobertas e questionamentos da adolescência.

Narrativamente, o filme segue a estilística do cinema objetivo e direto que Muylaert vem articulando nos seus trabalhos, sem invencionices de linguagem. Funcionava muitíssimo bem em Que Horas Ela Volta? quando ela tinha em mãos questões sociais e comportamentais do brasileiro médio que reverberavam muito bem no público e amparava-se nas próprias mudanças visíveis de nosso cotidiano. Agora, diante de um dilema comportamental atravessado pela redefinição do lar e dos laços familiares, Mãe Só Há Uma ainda soa como um ensaio para algo mais consistente enquanto discussão sobre gêneros e pertencimentos, muito embora não precisemos cobrar do filme postura tão assertiva sobre essas questões.



Muylaert tenta complexificar seus personagens que lidam com suas novas angústias, sem que o filme nunca queira oferecer respostas para dramas tão complicados. Dessa forma, a cineasta demonstra mais liberdade para observar os atropelos na vida de seus personagens, abusando inclusive de elipses temporais que fazem saltar a narrativa para um tempo em que alguma coisa já mudou ou está em curso, mas inevitavelmente onde as relações já se encontram dilaceradas pelas circunstâncias.

Somos levados a abraçar os conflitos de Pierre, como figura central da trama, mas o filme também não deixa de dimensionar o comportamento dos novos pais, vividos por Matheus Nachtergaele e Daniela Nefussi (que, espertamente, também interpreta a mãe adotiva do garoto). Eles buscam maneiras de conquistar o filho que há tanto tempo buscavam. Há ainda o irmão mais novo, também com seus problemas amorosos de adolescente imberbe, pego de surpresa pela nova reconfiguração dentro de casa.

Os momentos em que esses personagens são postos em atrito são certamente os melhores do filme, quando eles patinam por terreno arenoso na medida em que são quase forçados a se encontrarem. O tempo passa e é como se eles fossem obrigados a encarar certas situações e posturas na busca incessante para que o outro o(s) aceite em sua real condição – de um lado Pierre como figura transgênera e filho de outra família, e no polo oposto os pais como agentes progenitores legítimos, mas também figuras amorosas. 

Há um momento catártico quando Pierre explode e devolve com verdades toda a pressão que vem sentindo para ser alguém que ele não é – enquadrado num gênero tradicional, filho de uma família estranha. Porém, os maiores acertos do filme estão na fluidez com que esses conflitos são postos na tela em detalhes mínimos, sem preocupação de elucidá-los ou encerrá-los – o que não é necessariamente um problema em si, como comprova a sutileza do arco narrativo do próprio Que Horas Ela Volta?. Mãe Só Há Uma é possivelmente o filme mais aberto da cineasta até então, fazendo pulsar já nos minutos finais um percurso que ainda é de inquietação e afirmação dos desejos mais pessoais, contra todos e um pouco junto deles.

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