Não Devore Meu
Coração
(Idem, Brasil, 2017)
Dir:
Felipe Bragança
O
cinema que Felipe Bragança vinha fazendo até então flertava de modo muito
aberto e mesmo arriscado com a fabulação e certo imaginário fantasioso, por
vezes no limite do ridículo e do excesso. Seu mais novo filme, Não Devore Meu Coração, abertura do Festival
de Brasília, oferece muitas camadas e elementos, mas onde a fabulação cede espaço para outras atmosferas, incluindo aí um embate social que remonta a um
passado histórico e trágico do Brasil; ou antes, essa fabulação muito timidamente
não encontra lugar de expansão por conta de outros elementos de que o filme tenta
dar conta.
Talvez
por isso ele se desequilibre tanto ou tenha dificuldade de encontrar um tom. A
história se passa na fronteira entre Brasil e Paraguai, no Mato Grosso do Sul,
e reacende os conflitos entre brasileiros e indígenas das tribos Guarani.
Fernando (Cauã Reymond) faz parte de uma gague de motoqueiros, em constante
conflito com um grupo indígena mais rebelde, separados pelo Rio Apa. Paralelo a
isso, o irmão dele, Joca (Eduardo Macedo), apaixona-se por uma garota indígena,
a destemida Basano (Adeli Benitez). Ao mesmo tempo, corpos de índios mortos
começam a aparecer no rio, e aos conflitos familiares e amorosos de Fernando e
Joca somam-se as tensões na região entre os dois lado do rio.
O
filme remete a um passado de violência e extermínio dos povos indígenas –
bestialidade que se perpetua até então, é uma problemática do nosso tempo – e
tem relação com a Guerra do Paraguai, quando muitos índios lutaram a favor do
Brasil. A maioria foi morta e os que sobreviveram, esquecidos. No entanto, o
filme lida muito com as relações afetivas que se estabelecem entre os
personagens, sejam familiares ou amorosas, daí que os pontos de encontro com os
lances históricos funcionam mais como memória de sangue derramado e dor que paira sobre
aquele ambiente.
Há
certa estética a flertar com o pop e referências do cinema underground norte-americano
da década de 1970 – Warriors, do
Walter Hill, é uma citação declarada do filme –, que cria um ambiente soturno e
mesmo ameaçador muito particular, produzindo um efeito estético muito forte, e
as saídas da gague nas motos certamente é dos melhores momentos do filme. A
tentativa clara de chocar essa atmosfera com um ambiente de tensões sociais que
remetem a um passado trágico, incluindo traços da cultura indígena, tudo em uma
via de mistério, precisam ainda dividir espaço com os conflitos interpessoais
de muitos personagens – a relação entre irmãos, o irmão mais velho e o embate com
a mãe, o dele com o líder do grupo de outsiders,
o Telecath (Marco Lori), Joca e sua tentativa de aproximação a Basano e ainda as
relações de instabilidade dos dois com a figura paterna.
Se
nos filmes anteriores do cineasta havia sempre uma presença muito forte de uma proposição fantástica, carregada de uma fabulação profunda, até mesmo corajosa na
maneira de incorporá-la de modo meio mambembe – são obras como A Alegria ou a websérie Claun – Os Dias
Aventurosos de Ayana –, o problema maior aqui não é ela aparecer mais
amenizada e no limiar do quase etéreo, mas aquilo que toma seu lugar parece ainda um
tanto frágil pelo inchaço que impõe à narrativa.
Parte
de certa coragem e aposta no risco de quase soar ridículo talvez ainda resida na
paixonite incontrolada do pequeno Joca e no ímpeto que isso gera no garoto
quando ele precisa não só se declarar, mas romper com as imposições
polarizadas. Ele acaba sendo o elo de cisão nessa estrutura de confronto
que parece não ter fim, ainda que faça isso movido mais por um sentimento
pessoal do que como bandeira de uma luta maior. Há uma crença muito bonita na ingenuidade
com que esse garoto posiciona-se frente a seus sentimentos e no qual o filme deposita muita fé.
Entre
ser um filme que ecoa a História do país e uma trama de conflitos familiares,
amorosos e afetivos, via tensão e violência que permeiam a região, Não Devore Meu Coração fica no meio do
caminho quando precisa acertar o tom exato que deseja imprimir. Ainda assim,
consegue abordar tais questões por meio de uma construção narrativa menos
tradicional e mais arriscada, mesmo quando esse risco se desencaixe de seu
propósito.
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