E lá parto eu para as belas Minas Gerais, sempre acolhedoras, rumo a mais uma Mostra Tiradentes, a minha quarta edição consecutiva. Dessa vez, porém, o desafio é maior: chego como júri oficial da Mostra, responsabilidade grande e delicada, dada a importância da Mostra hoje no cenário nacional.
O
evento abre o calendário de mostras e festivais no Brasil e tem sua programação
de filmes e debates voltado para o cinema brasileiro. É mesmo incrível como a Mostra
construiu e consolidou ao longo dos anos um olhar muito arguto e abrangente para
certo cinema brasileiro que, em certa medida, passa ao largo da mídia e das
salas comerciais.
O
longa baiano Café com Canela, de
Glenda Nicácio e Ary Rosa – eles que são mineiros de nascimento, uai, mas
baianos de coração – abre os trabalhos nesta sexta à noite. A exibição do filme
é parte ainda da homenagem ao ator carioca Babu Santana, quase 20 anos de carreira
que se celebra em Tiradentes com exibição de outros de seus trabalhos.
“Chamado
realista” é a temática eleita para se discutir e reverberar durante esses dias
de convívio intenso com o cinema brasileiro – nós que sempre tivemos uma propensão
muito grande ao realismo no cinema, para além do que esse termo pode significar
e representar e ser ampliado nas discussões. Haverá ainda uma mostra paralela
com o mesmo nome a fim de repensar o tema, como a presença do curta baiano Mamata, de Marcus Curvelo.
E
há muita coisa espalhada pela programação da Mostra que vai até o sábado, 27. A
programação completa do evento pode ser acessada no site oficial. Quem venham
os filmes, pois.
Embebido de
Recôncavo
Curioso
pensar que um filme como Café com Canela, tão embebido de Recôncavo baiano, é
dirigido por essa dupla nascida aqui mesmo, em Minas. Egressos do Curso de
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB), Glenda e Ary
estudaram e não saíram de lá. Fundaram ali uma produtora, e Café com Canela é o
primeiro longa fruto dessa parceria. Como caminho dos mais naturais, o filme reflete
a cultura e o cotidiano do interior baiano, tão marcados por traços de
ancestralidade que rodeiam cidades como Cachoeira, São Félix e Muritiba.
Acompanhamos
a história de duas mulheres marcadas pelo luto. Margarida (vivida pela atriz do
Bando de Teatro Olodum, Valdinéia Soriano, melhor atriz no Festival de Brasília)
vive reclusa em casa mesmo depois de passado tanto tempo da morte de seu filho
pequeno; já Violeta (Aline Brunne, em seu primeiro trabalho como atriz) mora
com o marido e dois filhos, cuida da avó adoentada e batalha para vender de
porta em portas as coxinhas que ela mesma faz.
Demora
um tempo até que essas personagens se encontrem na trama linear do filme, tempo
aproveitado para se construir na tela um espírito de convivência interiorana,
um universo muito peculiar daquele lugar, além de apresentar outros
personagens, como o médico Ivan (Babu Santana) que vive com um companheiro mais
velho que ele (Antônio Fábio); e também a extrovertida Cidão (Arlete Dias), um
dos alívios cômicos do filme.
Mas
é quando Violeta e Margarida se encontram, por acaso, e descobrem que a mais
nova foi aluna de Margarida no colégio, o longa ganha outra cadência. Violeta
enxerga na dor do luto de Margarida uma barreira a ser quebrada, um modo de
libertação necessário, tarefa que ela toma para si com afinco. Nasce uma
amizade e com ela uma celebração da vida, com todos os seus percalços.
É
muito curioso olhar para um filme de pequeno porte como esse, em termos de
produção, apostando no risco da entrega a uma história que vende afetuosidade,
mais que tudo – algo que poderia estar desgastado no cinema brasileiro
contemporâneo, mas que encontra potência ainda aqui. Há pontos de fragilidade
visíveis na narrativa: os diálogos por vezes marcados demais, tangenciando
certo suingue caricato da prosódia baiana, a se escorar em falas comuns ou
marcadas de ingenuidade – como na cena do diálogo sobre o cinema ou o do “brinde
à vida”.
Em
outros casos, as opções de encenação apontam para vícios de diretores
iniciantes, como a divisão da tela em espacialidades diferentes, as cenas
iniciais que são, na verdade, tomadas do fim da história, ou um plano subjetivo
de um cachorro que surge inesperadamente em momento de maior emoção.
Existe,
no entanto, nessas escolhas, um ímpeto de dar a cara a tapa e de não se acanhar
perante tais procedimentos quando eles parecem mesmo sinceros, o que poderia
ser visto também como exigências por um cinema formalmente moldado nos ditames
clássicos padronizados. O filme prefere abraçar um romantismo naïf porque o
sentido do gesto narrativo está a serviço daquilo que a história representa, mais
uma vez, o lugar da afeição e da cumplicidade entre os personagens.
Glenda
já disse que o filme fala de “personagens urgentes, carregando consigo vozes
ancestrais que ainda aguardam seu momento de falar. Ou melhor, aguardavam,
porque agora é hora”. E o que se vê em tela é a potencialidade de sujeitos e
histórias há muito marginalizados no processo de constituição do cinema
brasileiro. É o cinema do Recôncavo baiano pulsando e apontando para caminhos
diversos, de contestação via afetos, ainda que o filme bambeie sobre suas
próprias limitações, mas equilibrando suas forças de mobilização.
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